Uma das coisas mais nojentas no estupro de uma
garotinha de 16 anos por mais de 30 homens, no Rio de Janeiro, é a tentativa de
certas pessoas de culpar a vítima.
Até o órgão sexual daquela menina, exibido na
internet, estava sangrando. E, mesmo assim, ainda há quem diga que ela teve
culpa.
Eis aí uma coisa que dói no fundo da alma de
qualquer pessoa com um mínimo de fé na espécie humana.
Como é possível que ainda haja gente querendo culpar
aquela garotinha, por tamanha brutalidade?
Trinta homens.
Trinta homens contra uma menininha...
Mesmo assim, ainda há quem a culpe...
E diz que estamos em um país cristão, onde as
pessoas se arrastam em enormes procissões, ou enchem templos evangélicos, com
as suas “Aleluias”.
Pra que “Aleluias”, pra que procissões, quando não
se tem misericórdia nem de uma garotinha estuprada por 30 marmanjos?
Quando o preconceito é tão forte, tão brutal, que se
sobrepõe a um mínimo de solidariedade?
Quando a mentalidade é tão cruel que mais parece a
de um psicopata?
Houve gente, nas redes sociais, que disse até que, se
essa garotinha estivesse em casa “lavando louça”, isso não teria ocorrido...
Chega a dar um nó na garganta. Uma vontade danada de
chorar...
Quer dizer que nós, mulheres, pra não sermos
“culpadas” de algo tão selvagem, temos de nos esconder do resto do mundo, é?
Quer dizer que não podemos estudar, trabalhar, andar
pela rua, porque, se o fizermos, teremos contribuído para o nosso estupro?
Quer dizer que não podemos ter os parceiros que
quisermos, quando quisermos, porque isso “autoriza” alguém a nos estuprar?
Quer dizer que não podemos usar shorts, saias
curtas, maquiagem; ir a uma festa, a um bar, porque seremos “putas”?
E ainda que fôssemos putas, quem foi o anormal que
disse que isso permitiria a alguém nos estuprar?
Basta!
Basta dessa moral imunda, que tenta nos reduzir a
meros úteros e vaginas; que tenta abstrair de nós a condição Humana.
Não existimos apenas para parir ou para “dar prazer”.
Não somos “belas, recatadas e do lar”.
Não somos depósito de esperma pra qualquer tarado.
Não somos pertences de nenhum patriarca.
Somos gente, pessoas, seres humanos, cidadãs!
Temos direito aos nossos corpos!
Eles nos pertencem por inteiro – e apenas a nós!
Temos todo o direito à vida, à liberdade, à
dignidade, como todo e qualquer cidadão, como toda e qualquer pessoa!
E o que exigimos não é nem mais, nem menos do que
isto: que nos respeitem! Que parem de nos coisificar!
Nossas vidas não se resumem a um pênis; não giram em
torno de um pênis. E nem precisamos de um pênis para Ser.
E se há homens que se permitem reduzir a um pênis,
eu só tenho é a lamentar.
Não temos qualquer papel exclusivo, específico,
inelutável que tenhamos de cumprir.
A escolha da vida que queremos é nossa! – e apenas
nossa!
E a vida que levamos – qualquer que seja! – não é
desculpa para nos estuprar, espancar ou matar.
Fico pensando na dor daquela menininha e dos pais
dela. Fico pensando o que eu faria se isso acontecesse com a minha filhinha.
E fico imaginando quão bom seria se esses 30
marmanjos fossem apenas uns “monstros”.
Ou se tivessem agido assim apenas porque em grupos,
em multidão, o ser humano é capaz de comportamentos inomináveis.
Mas aí eu procuro as estatísticas e vejo que 70% das
vítimas de estupro, no Brasil, são crianças e adolescentes.
E que em mais da metade desses 70%, o estuprador é o
pai, o padrasto, um amigo, um conhecido.
Aí também vejo que entre esses 30 marmanjos, há
meninos, de 18, 19 anos. Possivelmente, bons filhos, bons irmãos, bons
amigos...
E de repente, o “monstro”, tão confortável nessas
horas, desaparece.
E o que vejo surgir diante de mim, pra minha
tremenda angústia, é a sociedade, é a moral brasileira.
Essa moral hipócrita, que vive a falar em Deus, mas
incentiva o ódio, o preconceito, o machismo, a misoginia.
Foi essa sociedade, tão orgulhosa de seus “costumes”,
que fez desses 30 marmanjos aquilo que eles são.
Foi essa sociedade que também estuprou aquela
garotinha.
É essa sociedade que mata gays, negros e índios, que
também estupra menininhos e menininhas.
É ela que não sabe respeitar o outro. É ela que não
sabe conviver com o diferente. É ela que abomina os mais frágeis. É ela que
transforma o corpo da mulher em uma “coisa”, pra ser usada e abusada por quem
quer que seja.
Algum desses 30 marmanjos é inocente? Parece-me que
não. E todos terão de pagar, sim, pela brutalidade que cometeram.
Mas seria muito cômodo nos esquecermos de que são
pessoas; de que também são produtos de um tempo.
Um tempo em que até deputado sobe na tribuna, em
pleno Congresso, pra dizer que estupro é “merecimento”.
Um tempo em que um ator, que fez apologia ao estupro
em plena TV, sob os aplausos da plateia, é recebido pelo ministro da Educação.
A cada 11 minutos ocorre um estupro neste país.
E olhe que a subnotificação é alta: apenas 35% dos casos são denunciados.
E não é preciso ser nenhum especialista pra perceber
que boa parte dessa subnotificação decorre do medo da vítima de ser culpabilizada.
Exatamente como vários internautas tentaram fazer
com essa garotinha do Rio de Janeiro.
Em 2013, uma pesquisa do Ipea mostrou que 26% dos
entrevistados concordaram com a afirmação de que "mulheres que usam roupas
que mostram o corpo merecem ser atacadas",diz matéria no site da BBC.
Outros 58,5% concordaram com a afirmação de que "Se
as mulheres soubessem como se comportar, haveria menos estupros".
O problema, portanto, não são apenas esses 30
marmanjos.
Mas essa cultura machista, e até desumana, da
sociedade em que vivemos.
Felizmente, também houve forte reação nas redes
contra essa selvageria, essa brutalidade contra aquela garotinha.
Foi lançada a campanha nacional #EstuproNuncaMais
(veja aqui: https://ninja.oximity.com/article/Em-menos-de-uma-hora-campanha-EstuproN-1)
e estão previstas manifestações em várias cidades, inclusive, em Belém (na
quarta-feira, 01/06, às 10 horas, com saída do Instituto de Filosofia e
Ciências Humanas, no Campus do Guamá).
Temos de dar um basta a essa violência.
Como diz o slogan da campanha, não foram 30 cointra uma. Foram 30 contra todas.
#EstuproNuncaMais
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