quinta-feira, 13 de junho de 2024

O bebezinho voou...




Laila se foi.

Deus resolveu pegar-lhe de volta o espírito.

Reclamei.

Mas aí me lembrei de que ela foi apenas um empréstimo, em um momento difícil da minha vida.

Ademais, quer melhor cuidador do que Ele?

Minha filha ri das minhas histórias, mas sei que Laila e eu já vagamos juntas pela Terra, há milhares e milhares de anos.

Certa vez, ao visitar a minha mãe, olhei para a cozinha e vi dois homens altos, vestidos de branco.

Voltei os olhos para a mamãe, olhei de novo para a cozinha, mas eles haviam sumido.

Compreendi que permitiram que os visse.

E o engraçado é que não senti medo.

Pelo contrário: foi como se os conhecesse de longa data, eras talvez.

Foi essa a sensação que tive ao conhecer a Laila.

E certa vez, tive até uma visão, dessas de que a minha filha se ri.

Vi-me, há milhares de anos, como um caçador.

E a Laila como um animal grande e feroz, um lobo, talvez.

Lutávamos e, sei lá como, consegui domesticá-la.

E desde aí as nossas almas se ligaram, por toda a eternidade...

Quando conheci a Laila, em outubro de 2015, ela era apenas uma bolinha de pelos, de dois meses e meio.

Era muito maltratada por uma criatura ridícula, que a mantinha acorrentada, muitas vezes sem água e comida.

Mas sempre que a criatura a soltava, para que fizesse as necessidades na frente da casa, a Laila escapava e vinha se deitar no meu sofá.

Paguei veterinário, vacinas, vermífugo, vitaminas, comprei ração.

E já angustiada com a situação dela,  tentei até comprá-la.

A gota d’água foi quando ela foi acorrentada durante dois dias seguidos, latindo e chorando sem parar.

E eu a ouvir, dia e noite, aqueles pedidos desesperados de socorro.

Mas, novamente, a criatura deu sopa e a Laila fugiu.

Só que, dessa vez, não a devolvi.

Pedi ajuda a duas ONGs, e nada.

Uma até me disse que, se a levasse, teria de acorrentá-la também...

Levei-a à DEMA, mas não quiseram registrar a queixa.

Ela estava muito bem, sem sinais evidentes de maus-tratos, disseram-me.

Respondi: “É claro que ela parece bem, já que pago veterinário, ração e vitaminas!”.

Aí, um técnico disse uma coisa de que jamais esqueci: que eu havia feito algo semelhante à uma “destruição de provas”.

Como se estivéssemos a falar de uma “coisa” que eu tivesse que deixar ser maltratada até quase à morte, para só então acionar as autoridades.

Fiz uma queixa ao Ministério Público e a escondi em uma clínica.

Só a trouxe de volta depois que a criatura foi expulsa, pela dona daquela casa.

Desde então, Laila e eu viramos companheiras inseparáveis.

Tornou-se uma vira-lata grande, gorda e sorridente como a tutora.

Mas, ao contrário de mim, extremamente mansa.

Às vezes, dizia a ela: “Cara, se um ladrão entrar aqui, eu é que vou ter de nos defender, a bengaladas! Porque tu ainda vais é ciceronear o sujeito pela casa!”

Até os passarinhos tiravam graça com a cara dela.

Há uns dias, via-a correndo atrás de uns e ralhei: “deixa os bichinhos em paz!”

Mas meia hora depois, quando voltamos ao pátio, dois passarinhos levantaram vôo – e ela resmungando, quase falando que nem um ser humano.

E só então percebi que eles é que estavam a atentá-la...

Nunca senti pela Laila um amor de mãe: a minha racionalidade jamais permitiria isso.

E ao contrário do que dizem alguns psicólogos, nunca a tive como fuga da solidão, até porque sempre gostei de solidão.

Resgatei-a por piedade, e mesmo sem condições físicas e financeiras para tê-la.

É verdade que aprendemos, sim, a amar uma a outra.

Mas a nossa relação sempre foi baseada no respeito entre espécies diferentes.

Nunca a obriguei a nada.

E até quando ela sentia fome, simplesmente aparecia na cozinha.

E eu lhe dava pedaços de carne na boca e ela os pegava cuidadosamente.

O que me levou a compreender o quanto os cães sabem que podem nos machucar.

Também quase nunca saía de casa, principalmente nos finais de ano.

Sabia o quanto cães são sociáveis, muito mais do que nós.

Além disso, ela tinha um medo danado de foguetórios e de trovões.

E eu ficava angustiada, se começasse a chover e ela estivesse só.

Também tinha pavor de que ela fugisse: grande e tão mansa, um bicho-homem poderia lhe fazer mal, por medo ou por perversidade.

Mas hoje Laila se foi.

Começou a passar mal a uma da manhã e, às 7, a sua luz se apagou.

Imagino que deve estar a cheirar todos os perfumes do Paraíso.

Quem sabe, a achá-los surpreendentes.

Como o hidratante de flor de laranjeira, que uma vez se pôs a cheirar nas minhas pernas.

Já a mim restou um vazio enorme, um peso no peito que quase não me deixa respirar.

“É o ciclo da vida, a fugacidade da vida”, fico a repetir a mim mesma, “Todos passaremos por isso”.

Mesmo assim, permanece um quê de irrealidade, neste dia sombrio.

Até ontem à noite ela estava bem.

Mas, de repente, celeremente, já não estava aqui...

E agora só me resta esperar pelo dia em que tornaremos a nos encontrar.

Entre as estrelas, das quais viemos, e ao longo de muitas e muitas vidas.

Voa, bebezinho, voa!

Segue a tua nova jornada em paz!


12/06/2024