Às vezes, é preciso contrariar a opinião pública, para salvar a própria opinião pública.
A frase acima foi proferida pelo ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal (STF).
Sábias palavras as do ministro Gilmar Mendes. Mas que, infelizmente, não encontraram eco em boa parte de seus pares. De sorte que, ontem, o Supremo acabou produzindo, talvez, a decisão mais patética de toda a sua história.
Depois de dois dias de julgamento, a maior Corte brasileira de Justiça decidiu adiar (talvez para a semana que vem, ou sabe Deus para quando) a “proclamação do resultado” dessa longa discussão em torno da aplicação da Lei da Ficha Limpa já nas eleições deste ano.
Em outras palavras, decidiu não decidir: a dez dias do pleito manterá “sangrando”, como disse o ministro Marco Aurélio Mello, as candidaturas que se encontram sub judice, já que boa parte do eleitorado tende a não votar em candidatos que se encontram em tal situação.
Cinco ministros votaram a favor da aplicação da Lei da Ficha Limpa já nestas eleições, enquanto outros cinco ministros votaram contra.
Mas por absurdo que pareça, o Supremo não conseguiu resolver esse impasse.
E não por falta de previsão, em seu Regimento Interno, de mecanismos de desempate.
Mas porque aquela Corte, ontem, estava muito mais parecida com uma assembléia estudantil.
A mesma paixão que a gente vê na imprensa e na internet em relação à Lei da Ficha Limpa, arrombou as portas do Supremo.
Com raras e honrosas exceções, aqueles homens e mulheres, que deveriam ser os “guardiões” da Constituição, pareciam muito mais preocupados em salvaguardar a própria imagem perante a “opinião pública”.
Como se a “opinião pública” se restringisse ao que lemos nos jornais e na internet, em vez de ser, em verdade, a razoabilidade que vem das ruas.
O Ibope divulgou que 85% dos brasileiros são a favor da Ficha Limpa – e eu penso que esse número está errado, porque, na verdade, essa aprovação deve beirar os 100%.
Mas experimente perguntar aos “cidadãos comuns”, nas nossas ruas, o que é que eles acham de essa lei retroagir, para punir com a inelegibilidade os políticos que renunciaram ao mandato.
Aliás, nem precisa dessa enquete: a própria quantidade de eleitores que pretendem votar nesses políticos, apesar da Lei da Ficha Limpa, já nos dá tal resposta.
Tanto assim que o que está “sangrando” tais candidaturas não é a Lei da Ficha Limpa em si, mas, o medo do eleitor de “perder” o seu voto.
É grave, muito grave que ministros do Supremo Tribunal Federal prefiram resguardar a própria imagem, em vez da Constituição.
E mais ainda quando se constata que tais ministros se acovardam diante de um fantasma criado pela manipulação e cegueira de meia dúzia de cidadãos que insistem em perverter as opiniões alheias, com o objetivo de impor a todos nós o seu sectarismo. Ou, simplesmente, porque lhes interessa, por conveniências conjunturais, partidárias ou até financeiras, “cassar” determinados políticos.
A Lei da Ficha Limpa é quase uma unanimidade: todos somos a favor, sim, da exigência de probidade aos candidatos a um cargo eletivo.
Então, a questão não passa por aí, por ser contra ou favor da Lei da Ficha Limpa.
E quem reduz toda essa discussão a uma questão de ser contra ou a favor da Lei da Ficha Limpa ou é muito burro, ou é sectário, ou mal intencionado. Ou, quem sabe, as três coisas juntas.
O que se discute são as conseqüências, para o Estado Democrático de Direito, da maneira como se está a tentar aplicar a Lei da Ficha Limpa.
E quem questiona isso, como brilhantemente resumiu o ministro Gilmar Mendes, está é a tentar resguardar a própria possibilidade de opinião pública.
Está é a se expor nessa arena desgraçada desse grande circo romano, por perceber o perigo que esse rombo constitucional representa para todos nós.
Em outras palavras: os “mocinhos” dessa fita, ao contrário do que alguns imaginam, somos nós.
Nenhuma lei pode punir, hoje, agora, um sujeito por alguma coisa que ele fez no passado, quando aquilo que ele fez no passado não era considerado um crime.
Essa é uma questão fundamental para todos nós, porque nos resguarda, nos protege, da possibilidade de amanhã algum governo, ou algum “candidato” a ditador, usar desse tipo de coisa para nos perseguir, cassar os direitos políticos e até nos atirar na prisão.
Exagero? Não, infelizmente, não. Porque quando a gente permite um rombo desses no Estado de Direito, até o absurdo pode virar realidade.
Tão nocivo para a Democracia é o fato de se introduzirem mudanças, a qualquer tempo, no processo eleitoral.
Ou seja, o fato de não se respeitar a antecedência de um ano para as leis eleitorais.
Aliás, esse tipo de mudança – a qualquer hora, a qualquer dia – no processo eleitoral era muito comum na ditadura militar, como bem lembrou, ontem, um dos ministros do STF.
E por quê?
Porque assim você pode impedir que a oposição obtenha, por exemplo, maioria no Congresso ou nas assembléias legislativas, ou até que um líder carismático das oposições consiga se eleger.
Quer dizer: tanto a retroação legal, quanto a aplicação da Lei da Ficha Limpa sem respeitar essa anterioridade de um ano no processo eleitoral, traz prejuízos inimagináveis à Democracia e pode até facilitar, ou dar um “ar de legalidade”, ao autoritarismo.
E eu pergunto: será que o destino, hoje, de uns 100 ou 200 políticos vale isso?
Ora, o que se quer é que a Lei da Ficha Limpa produza seus efeitos só a partir das eleições de 2012 – quer dizer, daqui a mais ou menos 700 dias.
E será que por causa de 100 ou 200 políticos e em apenas 700 dias, nós vamos conseguir revolucionar a moralidade administrativa deste país?
Pensem, caramba!
Por que não esperar esses 700 dias, que passam num tapa, e impedir tais rombos no Estado de Direito?
Ninguém está dizendo para que a Lei da Ficha Limpa não seja aplicada, mas, apenas, para que seja aplicada sem espancar a Constituição.
Olhem, sinceramente: fiquei muito, muito preocupada com esse “julgamento-que-não-houve” do Supremo.
Fazia tempo que não me sentia tão angustiada, justamente por perceber que é quase uma luta inglória tentar alertar as pessoas acerca de tais perigos, porque, em sua boa vontade, a maioria dos formadores de opinião acaba é sendo manipulada por essa meia dúzia de sectários que, por seus interesses inconfessáveis, a tudo distorcem.
É quase como gritar com uma parede. E extremamente cansativo, por tão óbvios que parecem os perigos de tais precedentes.
As pessoas têm de compreender que a Lei da Ficha Limpa não é uma varinha mágica.
Ajuda, sim, mas, infelizmente, não resolve.
A mudança que tanto ansiamos, para a moralização da política brasileira, não acontecerá por Lei ou decreto, mas, por uma transformação cultural.
Uma transformação que começa bem lá atrás, na infância, quando, por exemplo, você manda o seu filho devolver o apontador ou a caneta que ele trouxe pra casa, e que não lhe pertence.
Ou quando você devolve o troco a mais que o caixa do supermercado lhe deu. Ou quando você simplesmente não joga lixo na rua, ou respeita os sinais de trânsito.
É uma transformação que passa pela compreensão da distância que existe entre o público e o privado, e da prevalência do primeiro sobre o segundo.
E que passa, ainda, pela intolerância a qualquer tipo de desonestidade no plano pessoal – e eu estou a falar de você mesmo.
É a negação radical dessa cultura do “jeitinho brasileiro”.
É a consciência de que somos parte de uma coletividade que fez de nós o que somos e que pode, sim, recuar ou avançar através de um simples gesto ou de uma inação da nossa parte.
E se tudo isso pudesse ser resolvido com uma simples Lei ou decreto, que bom que seria, né mermo?
Foi grande o esforço da sociedade brasileira para chegarmos até aqui.
Não foram poucos os que morreram nesse caminho.
E eu só espero é que a gente consiga ter sempre presente todo esse esforço.
Em vez de simplesmente nos deixarmos levar pelos interesses inconfessáveis de alguns.
Essa é uma hora crucial para a Democracia brasileira.
Não se deixe enganar, não.
Estamos a viver um momento que pode representar um grande avanço - ou um grande retrocesso.
E o que a gente não pode permitir é que os interesses eleitoreiros de alguns nos transformem em simples massa de manobra, em mera escada, para que eles possam atingir seus objetivos, mesmo que seja à custa dessa Democracia ainda tão frágil, que suamos tanto para conquistar.
FUUUUIIIIIIII!!!!!!!