segunda-feira, 17 de fevereiro de 2014

Ângelo Custódio, 210




Se aquela rua fosse minha, eu mandava ladrilhar.

Com cantigas de roda.

Pessoas sentadas à porta, à noitinha, a conversar.

Ângelo Custódio, meu tapete de Penépole...

Memória e fantasia entrelaçadas.

Fios que teço e desfaço, teço e desfaço, teço e desfaço, para não perder a certeza de mim...

Ilusória? Não.

Mágica, enevoada, e até um coração que não cessa de sangrar.

Mas real.

Dolorosamente, real...

Depois, o casarão da São Jerônimo, 960, já quase a adolescer.

O porão e as celas da escravatura convidavam a toda sorte de assombrações.

No terreno imenso, entre peremas, galinhas e marrecas; entre abacates, cacaus e abricós, a “árvore do enforcado” e um gazebo igualmente assustador...

Belém inteira era um sonho dentro de um sonho.

Princesas morenas, de longos cabelos, que até viravam flor.

Monstros a gritar na escuridão da noite.

Magia recendendo a cupuaçu.

Coaraci, cururu, pitiú: abracadabra, alakazam, amém.

Toda palavra é mágica: a criação do que julgamos ser, a negação do que nos atordoa.

Palavras não apenas exprimem: exorcizam.

Os anjos, os demônios e até esta dor em nós.

A dor de nos sabermos tão sós...

A certeza de que o tempo que vivemos nunca, nunca mais voltará...

E as mangueiras? E as enormes árvores da “Praça dos Leões”?

Na São Jerônimo, Presidente Vargas, Nazaré, centenários casarões enfileirados, em quase toda a extensão.

Matinta-Perêra, rasga-mortalha.

Procissões das almas a inundar a Cidade Velha.

A história a exalar dos casarões.

Os espíritos, um eterno retorno.

As águas – muitas, muitas, muitas águas.

Ao redor e a cair dos céus.

O verde exuberante, o cheiro de fruta.

Como era fértil aquela Belém!...

Mas hoje já não há almas.

Foram-se os casarões, as crianças, os imensos quintais.

O tempo arrastou meu pai, minha irmã, e vai levando, a cada dia, mais um pouquinho da Ângelo Custódio.

Toda a Belém é um turbilhão de edifícios.

Paredes enormes que se erguem a esconder o sol e  obstruir os ventos.

Muros que nos separam cada vez mais, como se não bastassem os muros civilizatórios...

Por toda parte, concreto, vidro e asfalto nos roubam o rosto e a alma.

São os novos anhangas da colonização.

E o medo por nos querermos vivos, embora ninguém saiba exatamente o que é estar vivo...

E chegará o tempo em que nem saberemos quem somos.

Ou o que tivemos.

Ou o que poderíamos ter.

Um tempo em que a Ângelo Custódio, crianças a brincar nas calçadas e o gosto da fruta madura serão, apenas, mais um paraíso a idealizar.

Belém, 17 de fevereiro de 2014.

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Pra dona Zenaide e pra Ângelo Custódio: