Se aquela rua fosse minha, eu mandava ladrilhar.
Com cantigas de roda.
Pessoas sentadas à porta, à noitinha, a conversar.
Ângelo Custódio, meu tapete de Penépole...
Memória e fantasia entrelaçadas.
Fios que teço e desfaço, teço e desfaço, teço e
desfaço, para não perder a certeza de mim...
Ilusória? Não.
Mágica, enevoada, e até um coração que não cessa de
sangrar.
Mas real.
Dolorosamente, real...
Depois, o casarão da São Jerônimo, 960, já quase a adolescer.
O porão e as celas da escravatura convidavam a toda
sorte de assombrações.
No terreno imenso, entre peremas, galinhas e marrecas;
entre abacates, cacaus e abricós, a “árvore do enforcado” e um gazebo igualmente
assustador...
Belém inteira era um sonho dentro de um sonho.
Princesas morenas, de longos cabelos, que até viravam
flor.
Monstros a gritar na escuridão da noite.
Magia recendendo a cupuaçu.
Coaraci, cururu, pitiú: abracadabra, alakazam, amém.
Toda palavra é mágica: a criação do que julgamos
ser, a negação do que nos atordoa.
Palavras não apenas exprimem: exorcizam.
Os anjos, os demônios e até esta dor em nós.
A dor de nos sabermos tão sós...
A certeza de que o tempo que vivemos nunca, nunca
mais voltará...
E as mangueiras? E as enormes árvores da “Praça dos
Leões”?
Na São Jerônimo, Presidente Vargas, Nazaré, centenários
casarões enfileirados, em quase toda a extensão.
Matinta-Perêra, rasga-mortalha.
Procissões das almas a inundar a Cidade Velha.
A história a exalar dos casarões.
Os espíritos, um eterno retorno.
As águas – muitas, muitas, muitas águas.
Ao redor e a cair dos céus.
O verde exuberante, o cheiro de fruta.
Como era fértil aquela Belém!...
Mas hoje já não há almas.
Foram-se os casarões, as crianças, os imensos
quintais.
O tempo arrastou meu pai, minha irmã, e vai levando,
a cada dia, mais um pouquinho da Ângelo Custódio.
Toda a Belém é um turbilhão de edifícios.
Paredes enormes que se erguem a esconder o sol e obstruir os ventos.
Muros que nos separam cada vez mais, como se não
bastassem os muros civilizatórios...
Por toda parte, concreto, vidro e asfalto nos roubam
o rosto e a alma.
São os novos anhangas da colonização.
E o medo por nos querermos vivos, embora ninguém
saiba exatamente o que é estar vivo...
E chegará o tempo em que nem saberemos quem somos.
Ou o que tivemos.
Ou o que poderíamos ter.
Um tempo em que a Ângelo Custódio, crianças a
brincar nas calçadas e o gosto da fruta madura serão, apenas, mais um paraíso a
idealizar.
Belém, 17 de fevereiro de 2014.
.......
Pra dona Zenaide e pra Ângelo Custódio: