(Abrem-se as cortinas. Em BG, o “Boi da Cara Preta” e os quatro dispostos como no capítulo anterior)
_Pra modo de organizá essa suruba, digo, essa sessão, vamo acomeçá pelo seu Sudão. Vamo lá, seu Sudão, vamo abri o coração!... Quando foi que acomeçô esse seu trauma de bastidô?
_Eu tinha oito aninhos, certo? E ganhei uma rãzinha, certo? Tão pequenina, querida correspondente! Eu passava horas olhando pra ela, certo?, e ela olhando pra mim, certo? Eu fazia: roac, roac! E ela me respondia: roac, roac!
_Qué dizê que aquela rã foi, a bem dizê, o seu primeiro amô?
_E que amor, querida correspondente, e que amor! Depois dela, certo?, comecei a ver rãs em todo canto: na pia, na geladeira, no banheiro, no quarto, no jardim. Mas o problema, certo?, é que ninguém mais via aquelas rãs!...Lembro até de uma ocasião, certo?, em que eu disse: paiê, olha lá que rã tão bonita! E ele, certo?, me deu um cascudo e disse: fica quieto, moleque doido! Você não está vendo que aí não tem rã nenhuma!
_Comadre, anote aí: Num isquecê de arreceitá a terapia da rã...
_E como é que é essa terapia?
_Ah, não se avexe, seu Sudão, que adepois eu lhe adigo, na hora do receitório. Mas, me explique, o que é que essa rã tem a vê com o seu trauma de bastidô?
_Ah, é que eu sofri muitíssimo quando ela partiu, certo?
_Ué, e como é que foi isso?
_Um belo dia, certo?, eu peguei a caixinha em que ela vivia e chamei: roac, roac! Mas ela, certo?, não me respondeu. Aí, certo?, eu abri a caixa, certo?, e ela estava, assim, ó, dura e esticada, certo?
_Atava morta?
_Eu não diria, certo?, exatamente morta, certo? Como a senhora bem sabe, querida correspondente, nem as palavras são definitivas!...
_Comadre, aescreva aí: esse sujeito, além de doido de pedra, num amorre nunnnnca!...
_Perdão, querida correspondente, mas eu discordo do seu diagnóstico!
_E desde quando o sinhô intendi de psicanálise, seu Barão?
_Mas não é preciso entender de psicanálise, para compreender o que o lorde Sudão quis dizer. Veja: isso é algo novo e extraordinário! Na verdade, ele está discorrendo sobre o imponderável: a diferença entre o ser e o parecer.
_Concordo plenamente, certo?, com você, certo?, meu caro Barão. Aliás, quero lhe dizer, certo?, que sempre concordamos em muita coisa, certo?
_Eu não tenho nenhuma dúvida sobre isso, caboco! Porque, veja: tirando uma diferença aqui e acolá, a careca, por exemplo, as sobrancelhas...Aliás, como foi que você conseguiu essas sobrancelhas?
_Ah, eu mandei, certo?, levantar e esculpir, certo? Mas eu acho, certo?, que ainda ficou uma falha bem aqui, ó!
_Mas isso é preciosismo seu, caboco! É uma reduzidíssima falha! Quase nem se nota!
_Vocês querem apará com esse papo de comadres! Aqui, quem tricota sou eu! Comadre, apegue aquela garrafa de pinga! E assirva cinco copos, que um é pro santo! Mas vamo avortá, seu Sudão, praquela primeira rã. E o sinhô, seu Barão, afique calado, mais é! Sim, seu Sudão, aí o sinhô acha que ela atava morta ou viva?
_Mas isso, certo?, é uma pergunta, como direi, extemporânea, certo? Se eu disser morta, certo?, a senhora vai dizer, certo?, que não estava viva. E se eu disser viva, certo? a senhora vai dizer, certo?, que não estava morta!...
_Veja, querida correspondente: esse é um problema extraordinariamente complexo! O que você precisa compreender é a imponderabilidade de tudo isso! Que é a vida? Que é a morte? Que é isso que é?
_Eu não diria melhor, certo?, meu caro Barão, certo? Aliás, quero lhe dizer mais: nem Napoleão, do alto de mil pirâmides, conseguiria afirmar, certo?, se as rãs existem ou não existem de fato!...
_Eu lhe diria mais, caboco: tudo, afinal, é uma questão de ponto de vista. Se considerarmos a cadeia produtiva do imponderável, teremos, 50% de chances de as rãs existirem e 50% de não existirem. Afinal, com a curvatura do universo em 571 graus na latitude 666 e os mundos paralelos a 5.880.000 anos-luz e o observador, que pode estar, por exemplo, a 1.800.809.900 ares ou hectares... Você não abriu a caixa, certo?
_Certo!...
_Acerto! Qué dizê, Vixe Maria! Vocês aquerem apará com isso? Credo, que esse negócio é contagioso, seu Sudão! Ô comadre, assirva mais uma rodada, que eu já to me acoçando toda! E o sinhô, seu Barão, si aquiete no seu canto. Se não, lhe amando pro choque elétrico! E aí, o sinhô vai se atreme todinho!
_Perdão, querida correspondente, mas tremer, certo?, ele já treme, certo?...
_E não é que é verdade, seu Sudão? Olhe só pro estropício! Até parece que vai alevantá vôo!...
_Rumo, certo?, a um universo paralelo, certo?...
_É, acho que o sinhô tem razão, seu Sudão. Pra ele, choque elétrico num arresolve!...
_Acho que o ideal, certo?, seria o oposto, certo?...
_Bem pensado, seu Sudão! Comadre, aescreva aí: num isquece de arreceitá pro Barão a terapia da múmia!
_(vindo se arrastando de joelhos) Não, pelo amor de Deus, querida correspondente, a terapia da múmia, não! Da última vez, quase fiquei doido!...
_Quase, certo?...
_Até hoje tenho alucinações extraordinárias por causa disso!
_Sujeito num assabe que alucina o tempo todo...
_Em qualquer universo, certo?, curvo, reto ou paralelo, certo?...
_Depois daquilo eu tinha até medo de acordar. Porque me via cercado pelos leões. E eu gritava para os meus companheiros: não podemos nos dispersar, não podemos nos dispersar! (levanta, volta-se e começa a dar cabeçadas na parede)
_Pronto, certo?, lá vem a história do gladiador!...
_Num me adiga, seu Sudão, num me adiga! Já num aconsigo nem vê esse filme sem me alembrá desse estropício...
_Mas, de onde é, certo?, que ele tira essas histórias, como direi, tão imaginativas, certo?...
_E doido arretira história de algum lugá? Ele acria, ué!...
_Mas isso, como direi, deve ser uma necessidade existencial muito profunda, certo?
_E desde quando doido tem necessidade existencial? É bilé, lunático, maluco, zureta...
_Mas você não acha que seria melhor, certo?, mandar contê-lo, certo? Afinal, desse jeito, certo?, ele acaba quebrando a parede...
_Bem pensado, seu Sudão!... Aliás, o sinhô apensa em tudo, num é?
_É que eu sempre tive, como direi, uma atração irresistível pelo espírito humano, certo? Andei por aí, certo? Li Gracian, Maquiavel... Mas, como direi, sempre tive certa facilidade em compreender as motivações de cada um...É como se eu conseguisse, certo?, enxergar a alma das pessoas, certo?...
_Que coisa linda, seu Sudão!... Mas o sinhô avê tudo de branco, é?
_Pelo contrário, certo?, querida correspondente! Vejo quase todas cinzentas, certo? E você não imagina, certo?, o quanto dói, certo?, essa constatação! Mas a sua, certo?, eu vejo com uma alvura exemplar!
_Num abrinque, seu Sudão! Branquinha, branquinha, é?
_Como direi, reluzente, certo?...
_Vixe Maria, seu Sudão! Que eu avô me desfazê em lágrimas! Mas, apere lá, que eu vô chamá um especialista em alma: ô seu Barão, ô seu Barão, apare de batê com a cabeça na parede e achegue aqui! Ô comadre, assaia da escuridão e se achegue aqui, também. E atraga a pinga e o gelo. Vamô mais é jogá um pôquer básico! Ô seu DJ, ataque aí o Thriller! E atoca a jogá!...
(Apaga-se o foco sobre os quatro. Foco num corpo de balé (umas 20 pessoas), vestido de zumbis, demônios e religiosos (de todas as religiões, estilizados, seminus). À frente o Inri, só de sunga, coroa de espinhos e manto vermelho. Fumaça sobe do chão. Há lápides. Uivos, raios. E criaturas da noite – lobisomens, vampiros - aprisionadas em gaiolas que pendem acima do palco, tentando sair. Ao fundo, no alto, feiticeiras e um caldeirão. O Inri e os bailarinos cantam e dançam: It's close to midnight/something evil's lurkin' in the dark/Under the moonlight/You see a sight that almost stops your heart/You try to scream/But terror takes the sound before you make it/You start to freeze/As horror looks you right between the eyes/You're paralyzed/'Cause this is thriller/Thriller night/And no one's gonna save you/From the beast about to strike/You know it's thriller/Thriller night/You're fighting for your life/Inside a killer/Thriller tonight, yeah/You hear the door slam/And realize there's nowhere left to run/You feel the cold hand/And wonder if you'll ever see the sun/You close your eyes/And hope that this is just imagination/Girl, but all the while/You hear a creature creepin' up behind/You're outta time/'Cause this is thriller/Thriller night/There ain't no second chance/Against the thing with the forty eyes, girl/(Thriller)/(Thriller night)/You're fighting for your life/Inside a killer/Thriller tonight/Night creatures call/And the dead start to walk in their masquerade/There's no escaping the jaws of the alien this time/(They're open wide)/This is the end of your life/They're out to get you/There's demons closing in on every side/They will possess you/Unless you change that number on your dial/Now is the time/For you and I to cuddle close together, yeah/All through the night/I'll save you from the terror on the screen/I'll make you see/That this is thriller/Thriller night/'Cause I can thrill you more/Than any ghost would ever dare try/(Thriller)/(Thriller night)/So let me hold you tight/And share a (killer, diller, chiller)/(Thriller here tonight)/'Cause this is thriller/Thriller night/Girl, I can thrill you more/Than any ghost would ever dare try/(Thriller)/(Thriller night)/So let me hold you tight/And share a/(killer, thriller)/I'm gonna thrill you tonight/[Rap]/Darkness falls across the land/The midnight hour is close at hand/Creatures crawl in search of blood/To terrorize y'all's neighborhood/And whosoever shall be found/Without the soul for getting down/Must stand and face the hounds of hell/And rot inside a corpse's shell/I'm gonna thrill you tonight/(Thriller, thriller)/I'm gonna thrill you tonight/(Thriller night, thriller)/I'm gonna thrill you tonight/Ooh, babe, I'm gonna thrill you tonight/Thriller night, babe/[Rap]/The foulest stench is in the air/The funk of forty thousand years/And grizzly ghouls from every tomb/Are closing in to seal your doom/And though you fight to stay alive/Your body starts to shiver
for no mere mortal can resist/the evil of the thriller)
(continua)
domingo, 18 de fevereiro de 2007
Festa VII
quinta-feira, 15 de fevereiro de 2007
I
Essa discussão recorrente em torno da diminuição da maioridade penal é típica da política brasileira do avestruz.
É certo que um crime bárbaro foi cometido. Uma criança de seis anos foi arrastada por quilômetros. E todos sentimos, não apenas com os pais dela. Mas, principalmente, pelos gritos dela. Pelo que sabemos que sofreu, sem que a pudéssemos socorrer.
É bom que seja assim. Que sejamos solidários com ela; que soframos com ela. E não apenas com ela, mas com todas as crianças deste imenso país. É humano que nos comova. E, mais que isso, que nos revolte, ao pensarmos nos filhos que temos em casa.
Afinal, pais e mães, tendemos a enxergar, naquela criancinha, o rosto do próprio filho.
Porém, é preciso mais que a pura e justificada emoção, para evitar a repetição de fatos como esse. E, ao escrever isso, tenho perfeita consciência do risco a que me exponho. Afinal, quem se opõe aos leões, corre o risco de acabar devorado também.
Mas, é preciso um mínimo de sanidade mental nesta hora de dor. Porque é de todos, do coletivo, que se trata.
II
Não vou defender os criminosos, porque isso, diante da comoção que se instalou nacionalmente, beiraria o suicídio.
Afinal, o tribunal popular já os julgou e condenou sumariamente. Todos – advogados, promotor, testemunhas, juiz e júri – já decidiram que são monstros.
Não, não há a mínima possibilidade de que não soubessem que a criança estava sendo arrastada. Afinal, todos se convenceram disso; é o consenso. Passou na Tv. A polícia afirmou. Eles confessaram – sabe-se lá sob que condições, mas isso é adereço. E, certamente, aparecerão mais e mais testemunhas do fato, a descrever a cena, de forma vívida.
Não importa que a Justiça saiba, de há muito, que a testemunha é a prostituta das provas, não apenas pela capacidade de corrupção, mas, principalmente, pelas falhas que a memória apresenta, sempre tendente a esquecer o fato e, até, a adicionar detalhes puramente imaginários. O que importa é que fulano disse que viu. E ponto. Principalmente, se a lembrança for acompanhada de um mar de lágrimas...
Não, eles não são humanos. Ao contrário de nós, jamais comoveria, a qualquer deles, os gritos de uma criança. Podemos esquartejá-los, enforcá-los, afogá-los, fritá-los, sujeitá-los a toda a sorte de dores e humilhações porque, simplesmente, não são humanos. E, depois de mortos, podemos até mesmo, tocar-lhes os corpos, curiosamente, para termos certeza de que são “coisas”, postas nos mundo pelo demônio, para afrontar a nossa humanidade.
Não tiveram nem pai nem mãe. E se tiveram, temos de, também, condenar quem os pariu. Que a vergonha recaia, também, sobre a família que acalentou “criaturas” assim.
Que coisa espantosa! Evoluímos tanto, em todos estes milhares de anos. Mas, hoje, se fosse permitido, esses cidadãos – sim, porque deveriam, também, ser cidadãos – seriam submetidos aos mesmos horrores dos primórdios da sociedade humana. Não faltaria quem se oferecesse para vazar-lhes os olhos. Ou para arrastá-los quilômetros a fio. Ou, ainda, para prender as tenazes e derramar o piche fervente.
E, no entanto, nada traria aquela criancinha de volta. Os faria cessar os gritos dela, que pareceremos escutar. Ou, ao menos, impediria que outras dezenas, centenas, milhares de crianças possam sofrer o destino dela.
III
Até que ponto, toda a brutalidade que queremos impor aos criminosos serve para evitar as dores de outras crianças, ou para evitar, simplesmente, a nossa própria dor? Até que ponto a barbárie a que somos tentados, procura, apenas, atenuar a nossa própria inércia, diante da raiz de toda essa questão?
Com certeza, o leitor pensará: lá vem mais um falar de miséria e de direitos humanos para os criminosos!
Ilude-se, porém, o caro leitor: não vou falar de nada disso.
Afinal, todos estamos cansados de saber como nascem, vivem e morrem, todos os dias, milhares, milhões de criancinhas, neste gigante da miséria chamado Brasil.
Todos sabemos que passam fome, que não têm escola, que levam porrada todo santo dia. E que, muitas vezes, morrerão sem saber o que é um abraço, um carinho, do pai ou da mãe. Pois, que muitos vêm de famílias desestruturadas, onde a luta por comida assume proporções tais, que deforma. Mas, isso, todos estamos cansados de saber, não é?
Também estamos cansados de saber que os traficantes arrastam esses pequenos morro abaixo do tráfico, do roubo, do assassínio. Todo santo dia. Várias vezes por dia. Anos a fio. E que não aparece ninguém para lhes fazer frente.
Porque o Estado brasileiro, simplesmente, não funciona. Porque temos policiais corruptos, juízes corruptos, políticos corruptos, advogados corruptos, empresários corruptos e corruptores.
Porque a nossa moral permite que seja assim. Porque achamos, sinceramente, que o certo, o inteligente, é levar vantagem. E que burros são os que não ingressam na doce teia da corrupção.
Então, eu jamais poderia falar ao leitor daquilo que já conhece. Do que está, todos os dias, à porta, na rua, a cada vez que põe a cabeça de fora do sacrossanto Lar.
Queremos sangue. E o que eu venho propor é, justamente, a normalização da indústria da vingança social.
IV
Li que um deputado do PFL propôs a redução da maioridade penal para 16 anos. Veja só: é pouco mais que a idade da minha filha, que tem 17, e uma cabeça de vento, um juízo de galinha que eu tenho certeza de que, largada no mundo, não conseguiria sobreviver sem mim.
Não, fique calmo, leitor, que isso não me comoveu, absolutamente. Jamais veria no rosto dela, o rosto de um desses monstros. Jamais imaginaria que, inteligente do jeito que ela é, talvez pudesse ser um deles, a roubar carros, traficar drogas e até a matar por um outro tipo de vida, se, ao invés de todo o carinho e atenção que teve, tivesse sido criada num ambiente de brutalidade, pelas ruas, na base da lei do mais forte.
Afinal, a minha filha é a minha filha. E eu jamais poderia imaginá-la tendo de gramar a dor da infância e da adolescência que não se teve, porque foi preciso garantir um pedaço de pão para aplacar a fome – que dói, sim, leitor, dói – ou porque foi preciso encarnar, todo santo dia, a personificação da crueldade, para sobreviver entre tantos outros cruéis, que essa é a lei das ruas.
Não, nem eu, nem a minha filha, nem o caro leitor, nem os filhos que, com igual carinho, está a criar seriam capazes de qualquer brutalidade, mesmo que submetidos a toda a sorte de brutalidades, todo santo dia, não é mesmo?
Por isso, só me revoltei com douto parlamentar do PFL devido à timidez da proposta dele. Para mim, deveríamos reduzir a maioridade penal para dez anos. Ou para seis, tal e qual a idade da criancinha que todos estamos a chorar.
Já foi assim - ou o caro leitor ignora? Ao longo da história da civilização, já enforcamos criancinhas, aos oito, dez anos, por roubarem um pedaço de pão. Mas, creio que falhamos ao não adaptar tão justa e importante medida à necessidade das massas, que ficaram meio que órfãs, após o fim dos autos de fé.
Que reuniam, diga-se de passagem, do príncipe ao plebeu, passando, obviamente, por religiosos, sempre prontamente piedosos, para aquelas ocasiões em que o in era o churrasquinho de gente...
V
Hoje, com as tecnologias de que dispomos podemos tornar isso sublime. Aliás, até os deuses invejariam a nossa capacidade de criação e de espetacularização.
Para começar, aprovemos a proposta do douto deputado. E enquanto trancafiamos e matamos esses jovens monstros de 16 anos, já podemos ir adaptando a nossa indústria, para, mais adiante, abrangermos, também, os monstros, dos 14, dos 12 dos 10, dos 8, dos 6.
Sim, porque é certo que enquanto trancafiamos e matamos os de 16, os traficantes, que não são bestas, passarão a recrutar os de 15 e os 14. E, depois, os de 13 e os de 12. E quem sabe, um dia, de forma surrealista, até bebês de colo.
Mas, enquanto isso acontece, podemos organizar a nossa indústria. Podemos, por exemplo, criar linhas de produção para cordas de enforcamento de acordo com a faixa etária. Sim, porque não convém colocar corda de 16 num corpo de 8 ou de 6. Não dá certo. Pode não enforcar corretamente...
Também dá tempo para que possamos realizar os devidos processos licitatórios. Sim, porque não é justo que apenas a Rede Globo retransmita, ao vivo e em cores, a todo o país, o espetáculo do adolescente ou da criança enforcada. É preciso garantir concorrência. Para que o serviço vendido ao Estado fique mais barato ao contribuinte.
E para que o telespectador habitual, de um ou outro canal, não precise nem acionar o controle remoto, para poder assistir, confortavelmente, no sacrossanto Lar, a um espetáculo tão grandioso.
Obviamente, que as TVs terão de se comprometer a espalhar câmeras em cada canto da câmara de execução, para que possamos acompanhar, passo a passo, todos os movimentos musculares do adolescente ou da criança executada.
Claro, também, que serão vendidos ingressos, para camarotes e arquibancadas.
Mas, para quem prefere ficar em casa, sempre haverá o conforto dos deliverys, de pipocas, batatas fritas, cervejas e refrigerantes.
VI
O único problema é que, depois de algum tempo, tais espetáculos, talvez, comecem a cansar. Afinal, serão tantas e tantas levas de executados que as pessoas começarão a exclamar: de novo?
Com o agravante, leitor, que os executados não terão qualquer glamour. Serão, invariavelmente, pobres e negros – ou, quando muito, pardos – famintos e esfarrapados.
Mas isso não será problema, de modo algum, para as grandes redes de TV e os jornalões. Elas poderão até criar, por exemplo, um Big Brother no corredor da morte – será fantástico, não é?
Ou, quem sabe, maravilhosos novelões, patrocinados pelas empresas brasileiras que dão tudo pelo social.
Obviamente, que, como já disse, em nossa política brasileira do avestruz, não resolveremos o problema.
Seguiremos a ser um país miserável e desigual, no qual 5% - ou até menos que isso – dos mais ricos detêm a maior parte da riqueza que é produzida pelo conjunto dos cidadãos.
Um país de favelas, palafitas, subúrbios, baixadas, no qual bebezinhos brincam na lama, que nem animais.
No qual, todo santo dia, milhões de bebezinhos pobres, negros, pardos são arrastados pela morte, por diarréias, gripes, sarampos, doenças que não matam nem cachorro nos países desenvolvidos.
Mas, isso é detalhe. Afinal, o que é importa é o sangue, a comoção, a vingança, o espetáculo.
Seguiremos, de consciência limpa, dizendo que nossas crianças se tornam, hoje, adultas mais cedo, por conta do que vêem na televisão. Que têm consciência plena, clara, do que querem ou não querem e do que é certo e do que errado.
Como se as opções sexuais que tomam; como se o sexo, que é apenas um aspecto da vida, pudesse ser considerado a totalidade.
E como se tais opções fossem feitas, realmente, sempre de forma clara e madura – aliás, nem temos sérios problemas com a gravidez precoce, não é menos? Nem somos um país onde a gravidez na adolescência já se tornou um problema de saúde pública, não é mesmo?
Façamos de conta que, hoje, por conta do alargamento da expectativa de vida, o ser humano não experimenta um prolongamento da infância e da adolescência.
Contra todas as evidências, tratemos nossas crianças como adultas. Como se a TV Globo e afins tivesse a capacidade de amadurecê-las, rapidamente, do ponto de vista mental – e não, apenas, físico, hormonal – para essa tarefa terrível que é exercício do livre arbítrio.
Que, até a nós, adultos, faz, por vezes, naufragar.
terça-feira, 6 de fevereiro de 2007
Sou honesta, e daí? Não sou burra, condescendente, ingênua, o raio que o parta. Sou, pura e simplesmente, honesta.
Estranho eu ter de justificar isso. Um dia, me disseram que era qualidade. Hoje, sinceramente, imagino que seja defeito. Afinal, honestidade, que vem a ser?
Me perdoe, leitor, mas estou abrindo o coração. Em mais ou menos 20 anos de política, já vi de tudo um pouco. E não posso dizer que nunca meti a mão na merda. Afinal, os “guerreiros” são para isso mesmo: para fazer o que é preciso.
Mas não tenho – e disso me orgulho – um palmo de terra no cemitério. Tenho, apenas, dívidas em profusão. E que eu espero, sinceramente, poder começar a pagar. Antes que os credores me mandem prender...
É estranha essa coisa dos valores. Por vezes, sinto a honestidade como um fardo. Primeiro, porque as pessoas não acreditam. Ou, outros, fazem de tudo para demovê-lo dessa “infeliz” condição. Ou, ainda, porque honestidade, neste país de moral lassa, tornou-se sinônimo de burrice.
Vim da classe média alta. Conheço, portanto, um bom whisky, o salmão defumado e o caviar iraniano. Mas, nada disso – infelizmente, caro leitor – conseguiu me seduzir. Sempre achei caviar pra lá de pitiu, salmão razoavelmente pai d’egua e o whisky pra lá de enjoativo.
Nunca consegui me ver apegada a coisas materiais. E, mais ainda, a coisas que a gente caga e mija na primeira esquina.
Sempre me foram muitíssimo mais sedutores a dona Maria e o seu José. Toda a beleza que são. Com as suas palavras, por vezes, incompreensíveis. Mas, com um sentimento que é maior que o mundo inteiro!
Amei, amo e creio que sempre amarei o seu José e a dona Maria. E é por isso que jamais conseguirei me conformar com a miséria em que vivem. Me transformei em um agente a serviço deles. Que se há de fazer?
Não sou incorruptível. Ninguém é. O problema, caro leitor, é que não consegui quem bancasse o meu preço. Porque o meu preço incluem o seu José e a dona Maria. É caríssimo, veja você.
É preço de doido. Afinal, poderia ter uma casa confortável, um carro (aliás, nunca consegui distingui-los; não conheço marcas) e um futuro tranqüilo para a minha filha.
Afinal, nasci para isso. Mas, não consigo “cumprir” o meu destino. Adoraria isso, seria bem menos estafante. E eu poderia ocupar um bom lugar de destaque em qualquer corte, não é mesmo? Pois é, com o meu talento, seria, quem sabe, quase um Galileu Galilei, a oferecer os céus como testemunha da autoridade do meu eventual mantenedor...
O problema é que o seu José e a dona Maria nem olhar para o céu podem. Vivem numa condição tão deplorável, sem comida, sem casa, sem educação, que eu nem consigo me imaginar como Galileu. Pois, se a dona Maria e o seu José, que são os meus senhores, não podem olhar para os céus displicentemente, como eu, escrava, vassala deles, poderia ver os céus que eles não vêem?
Tenho pela sociedade uma profunda gratidão. Sei que não existo individualmente; afinal, o Humano é uma construção coletiva. Meu talento não me pertence, nunca pertencerá. É um ganho coletivo. E ao coletivo eu preciso devolvê-lo.
Por isso, sigo honestamente pela vida. Cidadã orgulhosa da própria condição. Não consigo me corromper – simplesmente, não está em mim.
Adoraria isso, para ter todas as benesses que isso me proporcionaria. Afinal, sou humana. O problema é que não está em mim.
Gosto de me olhar no espelho e gostar de mim. Gosto que a minha filha goste de mim. Gosto disso. E é por isso que eu perguntei, ao começo: sou honesta, e daí?
P. S. Detesto, odeio, ter virado uma espécie de quintessência da moralidade. Porque sou humana, caramba! E eu penso nisso. Como todo mundo pensaria. Mas tenho vergonha. E isso é cruel!
domingo, 4 de fevereiro de 2007
Fragmentos biográficos V
A menina contava estrelas. E de tanto contar estrelas, passou a vê-las em todo canto. Resplandeciam nos grãozinhos de areia e nas superfícies das pedras. Nas folhas, nos galhos, nas raízes das árvores. No peito que se abria a cada manhã. Vivas, luzidias. Mas tão inalcançáveis como as que brilhavam nos céus.
“Estrelas não foram feitas para tocar” – sangrou. E pensou como não tocar o que se deseja, porque se ama. Ou que se ama porque se deseja, mesmo que em simples lampejo. A luz que rodeia e que nunca é a mesma. O ar que as narinas procuram sofregamente. O perfume. O instinto.
Ergueu as mãos ao encontro dos céus. E como que tocou os corpos que ardiam no negrume. Decompostos em cor. Ensimesmados. Gigantescos de solidão. Os corpos que jamais se encontram, porque não são exatamente corpos. Mas o anseio de um corpo.
Num rodopio, reencontrou-se no ventre da terra. Sentiu o azedume do bacuri que a árvore embalara tão docemente. O cheiro que se levantava do cupuaçuzeiro. O gosto do caju amarelinho que assobiava aos passarinhos. A chuva que afundava na terra, para ressurgir na primeira flor.
E a menina pensou que, talvez, não valesse à pena sonhar estrelas. Afinal, estariam bem ali em seus olhos. Mas embriagadas nas luzes de outras estrelas. E na combustão que as moveria à exaustão.
Ao alcance das mãos havia o jabutizinho que surgia de entre as pedras. A goiaba vermelha e sumarenta. O inebriante sapoti. Cacaueiros, ingazeiros, biribás. E todas as cores, e cheiros e sabores que a vida paria a cada momento. Infinitamente.
“Mas eles não ardem nem hipnotizam como as estrelas”, protestou, de si para si. Mas, que importava? As estrelas ficariam nos céus, como os enfeites que, tantas vezes, ajudara a pendurar na árvore de Natal. E cujo encanto era o encanto de não passarem de um encantamento. Que a gente olha, sonha e, um belo dia, embrulha. Para admirar, quem sabe, em outro Natal.
Belém, 04/02/2007.