Não se pode chamar de “infeliz” a declaração do senador Demóstenes Torres, do DEM, ao classificar como “relações consensuais” os estupros sofridos por milhões de mulheres negras, ao longo de quatro séculos de escravidão.
Infeliz é declaração por vezes extemporânea, mas que devidamente contextualizada, guarda alguma pertinência.
No caso do senador Demóstenes Torres o que há é um ato hediondo contra todas as mulheres deste país.
Não, não apenas contra as escravas negras, que sofreram violências indizíveis nas mãos de seus “senhores”.
Mas contra todas as mulheres que ainda hoje sofrem toda sorte de violência, pressão, assédio para que se submetam a tais “relações consensuais”.
A fala de Demóstenes Torres é a fala dos porões da nossa história; dos escravocratas que vêem os pretos como meros limpadores de latrinas e, a mulher negra, como mero orifício para a satisfação sexual do grande macho branco.
Ao longo destes cinco séculos de Brasil, assistimos a tentativas várias de branqueamento da Nação, especialmente, a associação ideológica do branco ao “belo” e “bom”, e do negro, ao lado oposto - ao “feio”, ao “sujo”, ao “mau”.
Por isso, não deixa de ser “pitoresco” o raciocínio daqueles que afirmam que, no Brasil, não há e nem nunca houve segregação racial, mas, uma miscigenação “festiva” e “natural”.
É certo que não chegamos a algo tão explícito como o “apartheid” da África do Sul, ou às “célebres” tabuletas dos banheiros públicos estadonidenses.
Mas, nem precisava: foi-nos impressa na alma a associação entre trabalho braçal e “indignidade” e entre negritude e todos os malefícios existentes sobre a Terra, qual a “marca de Caim”.
De sorte que, se caíram as muralhas da senzala, permaneceram as muralhas da ideologia.
E hoje, em pleno século XXI – vejam só! – esta nossa decantada “democracia racial” ainda precisa de legislação específica a criminalizar o racismo...
Não deixa de ser, é verdade, um avanço em relação aos países que ainda consideram o racismo como coisa “natural”.
Mas, não deixa de ser, também, uma ironia em relação aos que vêem “democracia racial”, apenas, como samba e futebol...
II
Falácias são engenharias poderosas do pensamento.
Mas, extremamente complicadas, uma vez que induzem, necessariamente, a erro.
Daí que uma coisa é o discurso hediondo de Demóstenes Torres – e outra a idéia que defende.
E a idéia de Demóstenes é a oposição às cotas raciais.
Os argumentos dele são, de fato, falaciosos, absurdos, infantis, anti-históricos, e até ofensivos.
Mas, o objeto de seu discurso – a oposição às cotas raciais – é, sim, muitíssimo justo.
Eu disse, há pouco, que durante séculos buscou-se “branquear” a Nação brasileira – e agora, numa reação compreensível, mas, infantil, o que se busca é “pretejar” o Brasil.
O Brasil não é preto – ou negro, se vocês preferirem; não tenho qualquer problema com as palavras, mas, com a maneira como elas são ditas... – não é branco, não é índio, não é chinês.
É a mistura de tudo isso – uma mistura tão extraordinária, tão de orgulhecer, que jamais deveria ter resultado na exclusão social da maioria dos brasileiros.
É engraçado isso.
Quando a gente pensa o Brasil e os Estados Unidos, a gente percebe que aqui, nos primórdios, não havia disseminada essa coisa de “puros”, “santos”; aquela coisa dos “escolhidos” por Deus, em busca da Terra Prometida.
O que havia eram multidões de fumados – inclusive os brancos, boa parte deles perseguidos pela Inquisição, o que hoje é, sim, um enorme elogio...
No topo da pirâmide não estavam os “santos”, por suas “obras”.
Estava, em verdade, uma aristocracia por “direito divino” – ou por esse “jeitinho” que desde então nos persegue.
E foi essa a mentalidade que se cristalizou no imaginário brasileiro.
É mais ou menos assim: não importa o que faça ou deixe de fazer, porque tenho um direito ancestral a isso.
É essa a senha para o portal do topo da pirâmide.
E é esse o pensamento que está por trás das cotas raciais.
É um preconceito pra lá de escroto, porque travestido de “modernidade”.
Ora, o menino branco, quando chega a uma universidade, é porque conquistou, por seu mérito, o justo prêmio pelo seu esforço.
Mas, o menino preto, quando chega lá é porque foi devidamente “tutelado” pelo Estado, através das cotas raciais.
Mas será que esse menino preto é retardado, é burro, para precisar da tutela estatal?
Esse menino preto tem tanta inteligência quanto eu, que estou a escrever a porcaria deste artigo.
É um ser humano consciente, pensante, bom pra diabo, como todo ser humano sabe ser – quando quer ser.
Não precisa, portanto, de tutela, de cota específica, pelo simples fato de ser preto.
E aqui eu gostaria de perguntar a vocês: o que é raça? O que é ser preto? O que é ser branco? O que é ser índio ou chinês?
A primeira coisa que a gente tem de ver é que não existe “raça”.
Isso não existe, é ignorância!
Um preto é tão ser humano quanto eu.
E se a minha pele é branca e a dele é preta é simplesmente por uma questão de adaptação a determinadas condições climáticas.
É uma questão que nada tem a ver com inteligência ou desinteligência; com inferioridade ou superioridade.
Mas, apenas, com a adaptação de um determinado organismo ao meio em que vive.
É uma questão de melanina, simplesmente; de menor ou maior fator de proteção em relação ao sol da região em que nasci.
Daí que é absurdo separar as pessoas pela cor da pele!
E raça, o que vem a ser isso?
É comida? É dança? É música? São costumes? É cultura?
Bem, neste Brasil de tamanha mistureba, de que raça somos nós, afinal?
Já vi branco de cabelo pixaim; já vi preto de pele branca.
Já vi preto que adora música clássica, já vi branco que cai no samba.
De que “raça” somos nós, afinal?
III
Uma coisa é a cota racial. Outra, a cota cujo corte é econômico, social.
Em outras palavras, a cota que tem por corte as condições objetivas.
E isso é de tão fácil compreensão que até a direita “avançada” – se é que existe direita “avançada”... - haverá de compreender.
Ora, eu não posso colocar para competir, diz-que em “igualdade de condições”, um menino que estudou no grupo escolar “Rui Barbosa” com um menino que estudou no colégio Nazaré.
E por quê?
Simplesmente, porque não há igualdade aí!
Alguém duvida?
Ora, o menino que estuda no Rui Barbosa, estuda no Rui Barbosa, provavelmente, porque seus pais são pobres – afinal, há tempos que até a classe média abandonou os serviços públicos!
Esse garotinho é um fumado, que muito provavelmente dorme em cima dos livros – quando tem livros e quando tenta estudar, depois de um dia inteiro de trabalho, porque garotos pobres quando não trabalham fora, trabalham dentro de casa, para ajudar no sustento da família.
E desde já vamos estabelecer uma regra aqui, para a coisa ficar bem bacana: não vamos nos pautar pelas exceções.
Ou seja, não vamos nos pautar por nós mesmos, ou por aquilo que pensamos acerca de nós mesmos.
Simplesmente porque isso é uma grande sacanagem, travestida de humildade.
Nós, formadores de opinião, temos uma capacidade crítica acima da média.
Então, não vamos querer tornar isso como que característica de massa.
Porque aí é hipocrisia, sacanagem, mesmo.
Mas, voltando ao exemplo: esse menino do colégio Rui Barbosa, por maior que seja a sua inteligência – e todos nascemos com o mesmo potencial – será prejudicado por condições objetivas, materiais.
Seus professores serão invariavelmente mal pagos, desestimulados e, muitas vezes, mal preparados.
Ele, certamente, muita vezes faltará às aulas – como deve, aliás, ter faltado às aulas o “doutor” Demóstenes... - porque não tinha dinheiro para o ônibus.
Ou, simplesmente, chegará à escola, depois de muito caminhar – mas, estará tão cansado, ou tão com fome, que nem conseguirá prestar atenção ao que diz o professor.
Como, então, posso colocar esse menino para competir com o menino do colégio Nazaré, que tem comida, livros, bons professores e um pai ou mãe que o deixa todo santo dia, na mesma hora, à porta do colégio?
É justo isso?
Se eu não estabelecer uma preferência de acesso à universidade pública, como é que esse menino do Rui Barbosa vai conseguir modificar a própria vida e a de sua descendência?
A quem interessa perpetuar a pobreza no Brasil?
IV
Coréia, Japão e muitos outros países realizaram uma verdadeira revolução social a partir da Educação.
Não há notícias, lá, de mortos ou feridos, como o que aconteceu na Comuna de Paris ou na Cabanagem.
A Democracia avançou quase que “naturalmente”, a partir do acesso dessas pessoas mais pobres à perspectiva de melhoria social.
Engana-se quem vê os social-democratas como meros socialistas.
Talvez, é verdade, nunca tenhamos deixado de ser; afinal, é a nossa matriz.
Mas, tivemos a capacidade de compreender que isso não acontecerá na ponta das baionetas, mas, na ponta do lápis.
Como o “doutor” Demóstenes já deve ter percebido, eis que jura que é “mulato” e que veio de baixo, tudo para nós é “historicamente natural”...
Como natural é o avanço de qualquer sociedade em busca do porvir.
FUUUIIIIII!!!!!!
Um comentário:
Grande abraço, Ana.
Nada a acrescentar.
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