Da Assessoria de Comunicação Social do Ministério
Público Federal no Pará (MPF/PA)
Apesar de já terem se passado cinco anos da publicação
do ato administrativo que prevê a informatização do sistema de controle da
cadeia econômica do ouro no Brasil, a medida e o sistema ainda não saíram do
papel.
Graças a isso, o país permite que a prática de fraudes
no setor seja bastante fácil, e que a investigação das ilegalidades se torne um
obstáculo quase intransponível, demonstram ações judiciais e manual de atuação
elaborados pelo Ministério Público Federal (MPF).
No Brasil, para fraudar uma transação ilegal do
comércio de ouro basta ter dois itens vendidos em papelarias: uma caneta e uma
nota fiscal avulsa. Então é só inserir dados falsos no documento.
Esse cenário extremamente favorável ao crime permitiu,
por exemplo, que mais de 4,6 mil aquisições ilegais de ouro fossem feitas
durante três anos por apenas um dos 67 postos oficiais de compra direta do
minério extraído em garimpos no país.
Só entre 2015 e 2018, o grupo fraudou a compra de 610
quilos do minério, causando um prejuízo de R$ 70 milhões à União.
Ao mesmo tempo em que proporciona um campo fértil e
rentável para a prática das ilegalidades, o padrão arcaico do atual sistema de
controle da cadeia do ouro impede que os crimes possam ser investigados com
rapidez.
Enquanto que fraudes em outras cadeias econômicas são
detectadas automaticamente pelos sistemas eletrônicos de controle, como
acontece na cadeia econômica da madeira, no caso do ouro o espaço temporal
entre a ocorrência e a constatação de um delito pode ser de anos.
A investigação do sistema criminoso no posto de compra
da empresa Ourominas em Santarém (PA) exemplificou essa dificuldade.
Para detectar as fraudes, primeiro foi preciso que o
MPF conseguisse autorização judicial para a quebra do sigilo fiscal da empresa
e para a busca e apreensão dos papéis.
Depois, o MPF e a Polícia Federal (PF) tiveram que
construir do zero um banco de dados eletrônico por meio da digitação das
informações de toda a documentação das 4,6 mil transações realizadas entre 2015
e 2018.
Em seguida, foi necessário interrogar diversos
vendedores de ouro e detentores de autorizações de exploração de lavras.
Foi preciso, ainda, requisitar e analisar contratos de
parcerias e procurações, verificar os lançamentos registrados em relatórios
anuais de produtividade das lavras, e periciar as áreas para onde haviam sido
emitidas permissões de lavras, inspecionando mudanças no uso do solo, retirada
da cobertura vegetal, presença de equipamentos de extração mineral, entre
outros quesitos.
Por fim, as equipes do MPF e da PF tiveram que
desenvolver uma metodologia de cruzamentos dos dados para, só então, conseguir
identificar as irregularidades.
Precariedades e dificultadores
Somada a uma série de omissões da ANM também descritas
nas ações ajuizadas pelo MPF em maio e julho deste ano e em manual de atuação
elaborado pela força-tarefa Amazônia do MPF, a falta de informatização dos
documentos e das rotinas de controle da cadeia econômica do ouro no Brasil
torna esse controle precário do começo ao fim, o que complica a investigação
dos crimes e impede que essa apuração possa dimensionar as ilegalidades de
maneira exata.
Como para a expedição de autorização de exploração da
lavra (a chamada Permissão de Lavra Garimpeira/ PLG), não há obrigatoriedade de
pesquisa prévia (estudo que indicaria, por exemplo, o tamanho da jazida, os
métodos a serem empregados para a extração e a produtividade esperada), não é
possível saber se a jazida de uma determinada área de extração autorizada teria
capacidade, de fato, de fornecer determinada quantidade de ouro declarada pelo
posto de compra.
Os contratos de parceria entre os mineradores não são
informatizados, fazendo com que seja difícil, para as autoridades, apurar se
determinado vendedor teria de fato contrato com um detentor de PLG, o que
permitiria ao vendedor a realização do transporte e da venda do minério.
Também não é possível consultar uma PLG e identificar
à primeira vista todos os garimpeiros que possuem contrato de parceria para
transportar o ouro extraído dessa lavra.
Além disso, a não obrigatoriedade de inserção dos
contratos de parceria em um sistema informatizado permite ao posto de compra
forjar contratos fraudulentos, conforme demonstraram as ações do MPF.
Como não é eletrônica a nota fiscal de aquisição do
ouro (atualmente, o único registro da origem do ouro adquirido), os órgãos de
controle não têm acesso direto às informações sobre as transações nos pontos de
compra.
Para esse acesso é necessária quebra de sigilo fiscal
e busca e apreensão da documentação. Ou seja: enquanto não for instalado um
sistema informatizado, as autoridades não podem fazer a conferência, em tempo
real, da legalidade das transações.
“Por exemplo, só após a quebra do sigilo fiscal do
Posto de Compra de Ouro (PCO) da Ourominas em Santarém foi possível descortinar
que o ouro extraído ilegalmente do entorno da Terra Indígena Zo'é, em Óbidos, foi
declarado como tendo origem em PLG localizada em Itaituba”, registra o MPF nas
ações judiciais.
Como os relatórios de produção das jazidas, chamados
de Relatório Anual de Lavra (RAL), não são devidamente fiscalizados pela ANM (muitas
vezes são entregues com dados incompatíveis com a quantidade de minério
indicada em notas fiscais, e a agência não toma as devidas providências), e
como os contratos de parceria não são lançados em um sistema informatizado de
controle, para comprovar as fraudes é preciso coletar depoimentos dos
detentores de PLGs e dos vendedores, o que dificulta uma investigação em larga
escala.
Na ausência do sistema informatizado, os volumes
declarados nas notas fiscais de aquisição de ouro precisam ser confrontados
manualmente com a produção da jazida declarada no RAL, e não há um mecanismo de
alerta sobre transações suspeitas ou bloqueio de créditos para transações, como
há para o comércio da madeira, controlado por ferramentas eletrônicas, como o
Documento de Origem Florestal (DOF) e o Sistema de Comercialização e Transporte
de Produtos Florestais (Sisflora).
Porque não há um controle informatizado sobre o
transporte no minério (como, por exemplo, as guias florestais, obrigatórias
para o transporte da madeira), os garimpeiros que possuam contrato de parceria
com determinado detentor de PLG podem utilizar essa autorização para
“esquentar” (acobertar a origem ilegal de) todo e qualquer ouro que porventura
extraiam de garimpos ilegais, sendo essa mais uma prática criminosa de difícil comprovação.
A ausência de controle informatizado, desde a extração
até o primeiro comprador, permite que PCOs e Distribuidoras de Títulos e
Valores Mobiliários (DTVMs) “esquentem” o ouro ilegal adquirido com o simples
lançamento aleatório de um número de uma PLG “guarda-chuva” nas notas fiscais
de aquisição, como ocorreu em larga escala no posto de compra citado nas ações
ajuizadas pelo MPF.
A não implantação do sistema informatizado também não
permite que se saiba, por exemplo, qual é o destinatário final do ouro ilegal
adquirido, dificultando a responsabilização solidaria (corresponsabilização) de
todos os envolvidos.
A não informatização (e sua consequente falta de
transparência), também dificulta, por exemplo, a possibilidade de criação de um
selo de certificação que auxilie o cidadão a realizar o consumo consciente do
minério.
Diferente do que ocorre no ramo madeireiro, por
exemplo, que conta com certificações como a do Forest Stewardship Council
(FSC), atualmente quem compra ouro não tem nenhuma garantia de que aquele
minério tenha origem legal. Consequentemente, o comprador pode estar
alimentando involuntariamente um mercado criminoso.
A legislação prevê a criação de um sistema de
certificação de reservas e de recursos minerais.
O sistema deveria servir para
subsidiar a formulação e implementação da política nacional para as atividades
de mineração, fortalecer a gestão dos direitos e títulos minerários, consolidar
as informações relativas ao inventário mineral brasileiro, definir e
disciplinar os conceitos técnicos aplicáveis ao setor mineral, entre outras
funções. No entanto, o sistema ainda não está criado.
À Justiça Federal em Santarém o MPF pediu que a ANM
seja obrigada tanto a normatizar o Sistema Brasileiro de Certificação de
Reservas e Recursos Minerais, nos termos da lei nº 13.757/2017, quanto a
informatizar todos os procedimentos relativos à compra, venda e transporte do
ouro, em obediência à portaria nº 361/2014 da agência.
Série – Desde a semana
passada o MPF está publicando uma série de notícias para resumir como as várias
fragilidades do sistema de controle da cadeia do ouro possibilitam a atuação de
organizações criminosas como a denunciada pela instituição e geram prejuízos
financeiros, sociais e ambientais de proporções devastadoras.
Também estão sendo descritos os pedidos feitos pelo
MPF à Justiça relativos às instituições públicas e às empresas processadas.
Este é o segundo texto da série.
O primeiro pode ser
acessado em “Descaminhos do Ouro”: Ações do MPF apontam provas do completo
descontrole da cadeia econômica do ouro no Brasil (atualizada). Clique no link a seguir: http://www.mpf.mp.br/pa/sala-de-imprensa/noticias-pa/acoes-do-mpf-no-para-apontam-provas-do-completo-descontrole-da-cadeia-economica-do-ouro-no-brasil
O conteúdo integral das ações, com todos os detalhes
disponíveis, já pode ser acessado nos links abaixo.
Ação cível: processo nº
1003404-44.2019.4.01.3902 – 2ª Vara da Justiça Federal em Santarém (PA)
Íntegra da ação: http://www.mpf.mp.br/pa/sala-de-imprensa/documentos/2019/acp_mpf_vs_anm_uniao_bacen_ourominas_descontrole_cadeia_custodia_ouro_julho_2019.pdf
Ação criminal: processo nº
0000244-28.2019.4.01.3902 – 2ª Vara da Justiça Federal em Santarém (PA)
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