segunda-feira, 17 de junho de 2019

Jatene maquiou indicadores fiscais com rolagem de R$ 1 bilhão por ano em pagamentos. Ministério Público de Contas fala em “looping orçamentário”, desconfia de contratos ou aditivos informais e pede que TCE apure possíveis ilegalidades. Foram R$ 5 bilhões em DEAs, entre 2014 e 2018.





O ex-governador do Pará, Simão Jatene, teria maquiado a contabilidade, com uma espécie de operação tapa-buracos nas finanças de sua administração. 

Entre 2015 e 2018, ele empurrou, em média, mais de R$ 1 bilhão em gastos para pagamento no ano seguinte, o que lhe teria permitido inflar indicadores fiscais, como o resultado primário e o superávit financeiro.  

A rolagem de pagamentos ocorreu com a colocação desses gastos na rubrica contábil Despesas de Exercícios Anteriores (DEA), que chegou a apresentar um volume de recursos quase 5.000% maior do que o resultado primário do ano anterior, ou seja, do ano em que ocorreu a rolagem. 

O resultado primário é o dinheiro que sobrou ou faltou, para o pagamento das despesas do governo, das quais são excluídos apenas os juros da dívida pública.  

Se faltou dinheiro, houve déficit; se sobrou, houve superávit, o que, em tese, permitirá o pagamento daqueles juros. 

É um dos principais indicadores da saúde financeira de um estado, coisa que Jatene sempre alardeou em relação ao Pará.  

No entanto, o fato de as DEAs superarem largamente o resultado primário do ano anterior indica que, sem a rolagem de pagamentos, as contas do ex-governador apresentariam é déficits, ou ao menos superávits bem menores. 

Os números são de uma Representação protocolada pelo Ministério Público de Contas do Pará (MPC), para que o Tribunal de Contas do Estado (TCE) realize uma inspeção que apure eventuais abusos e ilegalidades na utilização das DEAs.  

Segundo o MPC, essa espécie de “looping orçamentário”, que infla o resultado primário empurrando a quitação de despesas para o ano seguinte, resultou no pagamento de quase R$ 5 bilhões em DEAs, entre 2014 e 2018, apenas pelo Poder Executivo. 

A comparação do MPC entre as DEAs e os resultados primários, dos últimos quatro anos, parece confirmar, de fato, que a rolagem de pagamentos produziu superávits artificiais, no governo anterior.  

Em 2015, as DEAs alcançaram R$ 1,6 bilhão, ou 158% a mais do que o resultado primário de 2014 (R$ 621 milhões). 

Em 2016, foram R$ 982 milhões em DEAs, ou 124% a mais do que o resultado primário de 2015 (439 milhões). 

Em 2017, os R$ 777 milhões em DEAs representaram 12% a mais do que o resultado primário de 2016 (R$ 691 milhões). 

Em 2018, as DEAs consumiram R$ 889 milhões, ou 4.986% a mais do que o resultado primário de 2017 (R$ 17,5 milhões). 


Proporção alarmante


O enorme volume de DEAs também teria afetado outro importante indicador da saúde das contas públicas: o superávit financeiro. 

Ele é, basicamente, a diferença a maior do Ativo (tudo o que se tem), em relação ao Passivo (tudo o que se deve), quando se realiza o Balanço Patrimonial.  

Segundo o MPC, em todos os anos, entre 2015 e 2018, as DEAs chegaram a “absorver” (ou, melhor dizendo, a equivaler) a mais de 40% do superávit financeiro do ano anterior. 

E, novamente, o pico foi em 2015 (o ano posterior à reeleição de Jatene), quando as DEAs equivaleram a 67,70% do superávit financeiro de 2014.  

Essa proporção (mais de 40%) é considerada “digna de alarme”, por representar, segundo o MPC, um “forte indício” de que bens ou serviços podem ter sido fornecidos ao governo sem que ele tenha realizado a prévia emissão do empenho (que é um documento que tem de anteceder qualquer gasto público), criando uma despesa, uma obrigação de pagamento informal ou só depois formalizada. 

Ou ainda, de que ocorreram cancelamentos indevidos de empenhos e restos a pagar, já que a dívida permaneceu porque o credor tinha direito a esse dinheiro. 

 “Nesses casos, sequer as dívidas teriam sido contabilizadas apropriadamente nas contas do passivo circulante, o que, por consequência, pode ter culminado na subavaliação do passivo financeiro do Estado, distorcendo, finalmente, o resultado financeiro com base no Balanço Patrimonial”, escreveu o procurador Patrick Bezerra Mesquita, da 5 Procuradoria de Contas do MPC, que protocolou a Representação no último 14 de maio. 

Segundo ele, outro “forte indício” do cancelamento indevido de empenhos ou da falta de emissão prévia deles é que em todos os anos, entre 2015 e 2018, as DEAs superaram os Restos a Pagar, a rubrica na qual normalmente são colocadas as despesas empenhadas que não foram pagas no ano anterior.  

O pico dessa diferença foi em 2015 e 2016, quando as DEAs chegaram a atingir quase 1000% a mais do que os Restos a Pagar. 


Contratos ou aditivos informais

 
Outro fato que chama atenção é que o grupo contábil “mais financiado” pelas DEAs foi o de Outras Despesas Correntes (ODC), que registra os gastos de custeio, ou seja, de funcionamento e manutenção da máquina pública. 

Em 2015, as DEAs representaram 43,44% dos pagamentos das ODCs. 

Em 2016, já representavam 69,76%.  

Em 2017, 74,25%. 

Em 2018, 62,96%.  

Segundo o procurador, isso “reforça a suspeita de assunção de obrigações contratuais sem espaço orçamentário, e, portanto, sem empenho e inscrição em restos a pagar, para liquidação no ano seguinte. Em português simples: é bem possível que contratos ou aditivos informais estejam sendo criados para liquidação via DEA, o que importa em ofensa às regras básicas da Constituição Financeira”. 

Patrick Mesquita acredita, ainda, que a subavaliação do passivo pode ter inflado também a disponibilidade líquida de caixa do governo, já que ela seria bem menor sem a rolagem de pagamentos. 

Em 2015, o R$ 1,6 bilhão em DEAs equivaleu a 82,26% da disponibilidade de caixa de 2014 (R$ 1,962 bilhão). 

Em 2016, esse percentual foi de 68,75%, em relação à disponibilidade de caixa de 2015.  

Em 2017, de 67,86%, em relação a 2016. 

Em 2018, de 47,07%, em relação a 2017.  

Ele também critica a “falta de sinceridade” dos orçamentos do governo, principalmente a partir de 2015, já que, devido a suplementações, as DEAs acabaram consumindo, anualmente, mais de 2.000% acima do inicialmente orçado. 

Em 2018, por exemplo, estavam previstos R$ 32 milhões em DEAs, pelo Executivo, mas acabaram sendo pagos mais de R$ 800 milhões, um valor tão expressivo que superou até mesmo todo o orçamento do Poder Judiciário, naquele ano.  

Tal fato, a seu ver, “sugere falta de transparência e de planejamento no manejo das DEAs, vez que sua utilização foge da previsão orçamentária anual para ser exponenciada à ultima potência via abertura de créditos suplementares, cujo controle e transparência para o parlamento e para a sociedade são mais opacos, haja vista decorrerem de ato privativo do poder executivo”. 



Pará chegou a gastar com DEAs o dobro da média de 24 estados. Conselheira de Contas diz que DEAs vêm sendo usadas para maquiar contas públicas.


Em um livro sobre finanças públicas, citado na Representação do MPC, a conselheira Doris Coutinho, do Tribunal de Contas do Tocantins, informa que, em 2015, os pagamentos de DEAs atingiram R$ 16,5 bilhões, em um conjunto de 24 estados.  

O fato chama atenção porque, na mesma Representação, consta que o Pará gastou, naquele ano, mais de R$ 1,6 bilhão com as DEAs. 

Não se sabe se o Pará consta entre os 24 estados citados pela conselheira.  

Mesmo assim, impressiona que os gastos dele tenham representado cerca de 10% do que gastaram, juntas, 24 unidades federativas, ou mais que o dobro do gasto médio com DEAs de cada uma delas (R$ 687,5 milhões). 

O problema, como explica Doris, é que as DEAs vêm sendo usadas para maquiar as contas públicas e “formam um esqueleto orçamentário que possibilita aos estados esconder os gastos debaixo do pano grosso da desfaçatez, a fim de melhorar os indicadores da meta primária ao final do ano”.  

Desde o nascedouro elas são problemáticas, por abrigarem despesas “que se dão à margem do orçamento, a exemplo daquelas que não foram processadas a tempo, ou referente a compromissos reconhecidos após o encerramento do exercício”. 

Daí porque deveriam incluir apenas “despesas excepcionalíssimas”.  

No entanto, o que ocorre hoje é “um evidente exagero de valores dispendidos dessa forma, o que vai de encontro a qualquer exigência de planejamento”. 

O procurador Patrick Mesquita vai pelo mesmo caminho e estranha “o alto montante de DEA executado ano após ano no âmbito do Estado do Pará, o que mais parece uma bola de neve de esqueletos orçamentários que ultrapassam governos, ideologias, gestores, partidos e pessoas. Expediente que é para receber a nota de excepcionalidade jamais poderia, em condições normais de temperatura e pressão, alcançar a cifra de 5 bilhões em cinco exercícios financeiros”.  

Os altos gastos nessa rubrica comprometem o orçamento do ano seguinte, o que é especialmente complicado em finais de mandato, até pelas restrições legais para que isso ocorra. 

Esse foi, aliás, um dos motivos que levaram o MPC a instaurar, ainda no ano passado, um Procedimento Apuratório Preliminar (PAP) sobre o caso.  

A investigação encontrou indícios de “uso indevido” das DEAs. 

Daí a Representação, que aponta até “repetidos e volumosos indícios de ilegalidades” na utilização dessa rubrica. 

Confira no site do MPC a íntegra da Representação: http://www.mpc.pa.gov.br/arquivos/representacao/201903_g5.pdf


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Publiquei a matéria acima na edição de 02/06/2019 do jornal Diário do Pará. Era para tê-la reproduzido aqui naquela mesma semana. No entanto, fui hospitalizada às pressas no dia 4 e tive de me submeter a uma cirurgia, para a retirada da vesícula, no dia 6. Mesmo assim, peço desculpas aos leitores pela demora nesta postagem.

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