O ex-governador do Pará, Simão Jatene, teria maquiado
a contabilidade, com uma espécie de operação tapa-buracos nas finanças de sua
administração.
Entre 2015 e 2018, ele empurrou, em média, mais de R$
1 bilhão em gastos para pagamento no ano seguinte, o que lhe teria permitido
inflar indicadores fiscais, como o resultado primário e o superávit financeiro.
A rolagem de pagamentos ocorreu com a colocação desses
gastos na rubrica contábil Despesas de Exercícios Anteriores (DEA), que chegou
a apresentar um volume de recursos quase 5.000% maior do que o resultado
primário do ano anterior, ou seja, do ano em que ocorreu a rolagem.
O resultado primário é o dinheiro que sobrou ou faltou,
para o pagamento das despesas do governo, das quais são excluídos apenas os
juros da dívida pública.
Se faltou dinheiro, houve déficit; se sobrou, houve superávit,
o que, em tese, permitirá o pagamento daqueles juros.
É um dos principais indicadores da saúde financeira de
um estado, coisa que Jatene sempre alardeou em relação ao Pará.
No entanto, o fato de as DEAs superarem largamente o
resultado primário do ano anterior indica que, sem a rolagem de pagamentos, as
contas do ex-governador apresentariam é déficits, ou ao menos superávits bem menores.
Os números são de uma
Representação protocolada pelo Ministério Público de Contas do Pará (MPC), para
que o Tribunal de Contas do Estado (TCE) realize uma inspeção que apure eventuais
abusos e ilegalidades na utilização das DEAs.
Segundo o MPC, essa espécie
de “looping orçamentário”, que infla o resultado primário empurrando a quitação
de despesas para o ano seguinte, resultou no pagamento de quase R$ 5 bilhões em
DEAs, entre 2014 e 2018, apenas pelo Poder Executivo.
A comparação do MPC entre
as DEAs e os resultados primários, dos últimos quatro anos, parece confirmar,
de fato, que a rolagem de pagamentos produziu superávits artificiais, no
governo anterior.
Em 2015, as DEAs alcançaram
R$ 1,6 bilhão, ou 158% a mais do que o resultado primário de 2014 (R$ 621
milhões).
Em 2016, foram R$ 982
milhões em DEAs, ou 124% a mais do que o resultado primário de 2015 (439
milhões).
Em 2017, os R$ 777
milhões em DEAs representaram 12% a mais do que o resultado primário de 2016 (R$
691 milhões).
Em 2018, as DEAs consumiram
R$ 889 milhões, ou 4.986% a mais do que o resultado primário de 2017 (R$ 17,5
milhões).
Proporção alarmante
O enorme volume de DEAs também teria afetado outro importante
indicador da saúde das contas públicas: o superávit financeiro.
Ele é, basicamente, a diferença a maior do Ativo (tudo
o que se tem), em relação ao Passivo (tudo o que se deve), quando se realiza o Balanço
Patrimonial.
Segundo o MPC, em todos os anos, entre 2015 e 2018, as
DEAs chegaram a “absorver” (ou, melhor dizendo, a equivaler) a mais de 40% do superávit
financeiro do ano anterior.
E, novamente, o pico foi em 2015 (o ano posterior à
reeleição de Jatene), quando as DEAs equivaleram a 67,70% do superávit
financeiro de 2014.
Essa proporção (mais de 40%) é considerada “digna de
alarme”, por representar, segundo o MPC, um “forte indício” de que bens ou
serviços podem ter sido fornecidos ao governo sem que ele tenha realizado a
prévia emissão do empenho (que é um documento que tem de anteceder qualquer gasto
público), criando uma despesa, uma obrigação de pagamento informal ou só depois
formalizada.
Ou ainda, de que ocorreram cancelamentos indevidos de
empenhos e restos a pagar, já que a dívida permaneceu porque o credor tinha direito
a esse dinheiro.
“Nesses casos,
sequer as dívidas teriam sido contabilizadas apropriadamente nas contas do
passivo circulante, o que, por consequência, pode ter culminado na subavaliação
do passivo financeiro do Estado, distorcendo, finalmente, o resultado
financeiro com base no Balanço Patrimonial”, escreveu o procurador Patrick
Bezerra Mesquita, da 5 Procuradoria de Contas do MPC, que protocolou a
Representação no último 14 de maio.
Segundo ele, outro “forte indício” do cancelamento
indevido de empenhos ou da falta de emissão prévia deles é que em todos os
anos, entre 2015 e 2018, as DEAs superaram os Restos a Pagar, a rubrica na qual
normalmente são colocadas as despesas empenhadas que não foram pagas no ano
anterior.
O pico dessa diferença foi em 2015 e 2016, quando as
DEAs chegaram a atingir quase 1000% a mais do que os Restos a Pagar.
Contratos ou aditivos informais
Outro fato que chama atenção é que o grupo contábil
“mais financiado” pelas DEAs foi o de Outras Despesas Correntes (ODC), que
registra os gastos de custeio, ou seja, de funcionamento e manutenção da
máquina pública.
Em 2015, as DEAs representaram 43,44% dos pagamentos das
ODCs.
Em 2016, já representavam 69,76%.
Em 2017, 74,25%.
Em 2018, 62,96%.
Segundo o procurador, isso “reforça a suspeita de
assunção de obrigações contratuais sem espaço orçamentário, e, portanto, sem
empenho e inscrição em restos a pagar, para liquidação no ano seguinte. Em
português simples: é bem possível que contratos ou aditivos informais estejam
sendo criados para liquidação via DEA, o que importa em ofensa às regras básicas
da Constituição Financeira”.
Patrick Mesquita acredita, ainda, que a subavaliação
do passivo pode ter inflado também a disponibilidade líquida de caixa do
governo, já que ela seria bem menor sem a rolagem de pagamentos.
Em 2015, o R$ 1,6 bilhão em DEAs equivaleu a 82,26% da
disponibilidade de caixa de 2014 (R$ 1,962 bilhão).
Em 2016, esse percentual foi de 68,75%, em relação à
disponibilidade de caixa de 2015.
Em 2017, de 67,86%, em relação a 2016.
Em 2018, de 47,07%, em relação a 2017.
Ele também critica a “falta de sinceridade” dos
orçamentos do governo, principalmente a partir de 2015, já que, devido a
suplementações, as DEAs acabaram consumindo, anualmente, mais de 2.000% acima
do inicialmente orçado.
Em 2018, por exemplo, estavam previstos R$ 32 milhões
em DEAs, pelo Executivo, mas acabaram sendo pagos mais de R$ 800 milhões, um
valor tão expressivo que superou até mesmo todo o orçamento do Poder
Judiciário, naquele ano.
Tal fato, a seu ver, “sugere falta de transparência e
de planejamento no manejo das DEAs, vez que sua utilização foge da previsão
orçamentária anual para ser exponenciada à ultima potência via abertura de
créditos suplementares, cujo controle e transparência para o parlamento e para a
sociedade são mais opacos, haja vista decorrerem de ato privativo do poder
executivo”.
Pará
chegou a gastar com DEAs o dobro da média de 24 estados. Conselheira de Contas diz
que DEAs vêm sendo usadas para maquiar contas públicas.
Em um livro sobre finanças públicas, citado na
Representação do MPC, a conselheira Doris Coutinho, do Tribunal de Contas do
Tocantins, informa que, em 2015, os pagamentos de DEAs atingiram R$ 16,5
bilhões, em um conjunto de 24 estados.
O fato chama atenção porque, na mesma Representação,
consta que o Pará gastou, naquele ano, mais de R$ 1,6 bilhão com as DEAs.
Não se sabe se o Pará consta entre os 24 estados
citados pela conselheira.
Mesmo assim, impressiona que os gastos dele tenham representado
cerca de 10% do que gastaram, juntas, 24 unidades federativas, ou mais que o
dobro do gasto médio com DEAs de cada uma delas (R$ 687,5 milhões).
O problema, como explica Doris, é que as DEAs vêm
sendo usadas para maquiar as contas públicas e “formam um esqueleto
orçamentário que possibilita aos estados esconder os gastos debaixo do pano
grosso da desfaçatez, a fim de melhorar os indicadores da meta primária ao
final do ano”.
Desde o nascedouro elas são problemáticas, por
abrigarem despesas “que se dão à margem do orçamento, a exemplo daquelas que
não foram processadas a tempo, ou referente a compromissos reconhecidos após o
encerramento do exercício”.
Daí porque deveriam incluir apenas “despesas
excepcionalíssimas”.
No entanto, o que ocorre hoje é “um evidente exagero
de valores dispendidos dessa forma, o que vai de encontro a qualquer exigência
de planejamento”.
O procurador Patrick Mesquita vai pelo mesmo caminho e
estranha “o alto montante de DEA executado ano após ano no âmbito do Estado do
Pará, o que mais parece uma bola de neve de esqueletos orçamentários que
ultrapassam governos, ideologias, gestores, partidos e pessoas. Expediente que
é para receber a nota de excepcionalidade jamais poderia, em condições normais
de temperatura e pressão, alcançar a cifra de 5 bilhões em cinco exercícios
financeiros”.
Os altos gastos nessa rubrica comprometem o orçamento
do ano seguinte, o que é especialmente complicado em finais de mandato, até
pelas restrições legais para que isso ocorra.
Esse foi, aliás, um dos motivos que levaram o MPC a instaurar,
ainda no ano passado, um Procedimento Apuratório Preliminar (PAP) sobre o caso.
A investigação encontrou indícios de “uso indevido” das
DEAs.
Daí a Representação, que aponta até “repetidos e
volumosos indícios de ilegalidades” na utilização dessa rubrica.
Confira no site do MPC a íntegra da Representação: http://www.mpc.pa.gov.br/arquivos/representacao/201903_g5.pdf
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Publiquei a matéria acima na edição de 02/06/2019 do
jornal Diário do Pará. Era para tê-la reproduzido aqui naquela mesma semana. No
entanto, fui hospitalizada às pressas no dia 4 e tive de me submeter a uma
cirurgia, para a retirada da vesícula, no dia 6. Mesmo assim, peço desculpas
aos leitores pela demora nesta postagem.
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