Vi no Face, compartilhei e quero deixar também aqui pra vocês, no A Perereca da Vizinha, esse
texto magnífico da jornalista Eliane Brum sobre o rastro de miséria deixado por
Belomonte. Não deixe de ler. A foto é de Lilo Clareto:
“Otávio
das Chagas tornou-se um não ser. A hidrelétrica de Belo Monte o reduziu a um
pescador sem rio, um pescador que não pesca, um pescador sem remos e sem canoa.
A ilha do amazônico Xingu, no Pará, onde cresceu, amou Maria e teve nove filhos
não existe mais. Entre ele e o peixe não há mais nada.
Ele
manda trazer uma boroca (bolsa) onde guarda os papéis. Está numa casa na cidade
de Altamira pagando aluguel, a família ao redor dele, estranhando-se na
paisagem. Otávio espera que os papéis possam salvá-lo, comprovar que viveu,
atestar que pescava, dar conta dos surubins, dos matrinxãs, dos tucunarés e dos
curimatãs que o rio lhe deu para encher a barriga de seus meninos. Comprovar
até que tinha uma casa de palha onde a mulher atava as redes embaixo de pés de
jaca. Otávio não sabe o que os papéis contam dele. Mas espera que digam algo de
bom, algo que devolva a ele um sentido, desfaça a contradição e, por fim,
retornem-no a si mesmo.
-
Não tenho leitura – ele avisa, oferecendo a mim os hieróglifos que dizem dele
para que eu os desvende.
Há
algo de violento naquilo que se escreve sobre os que não se leem em papéis,
naqueles que até o nome é escrito por outros. Recuso por enquanto aquela porta.
Peço ao pescador que já não pesca que se documente em seus próprios termos.
Otávio
então busca marcas que não são letras. Seu pai está sepultado numa ilha que
também já foi engolida pela usina, o corpo do pai jaz sob o paredão de
concreto. Otávio descobre que a geografia inteira de sua vida sumiu, que seus
mortos já não têm lugar. E que toda a enormidade do que perdeu foi calculada em
R$ 12 mil. Aos 61 anos, ele agora só tem memória. E as chagas do nome já não
consegue curar. Francisco, 29 anos, o filho que sustenta a família em Altamira
com a força bruta dos braços, interrompe. Aponta o próprio corpo para provar
que existe. Ele guarda ali as marcas da ilha, uma cicatriz maior do que as
outras. Na cidade está desterrado, à deriva. Mas o corpo lhe pertence, e
Francisco vai se mapeando pelas cicatrizes.
-
Eu tinha dois anos de idade quando peguei esse golpe lá. Minha mãe conta,
porque eu não lembro. Peguei o machado e saí com ele na carreira.
As
palavras de Francisco buscam um porto, uma forma de se ancorar quando ele já
não reconhece o mundo. Aquele que migra, ainda que saiba que talvez não exista
retorno para a terra que deixou, conta com a concretude do passado. Há um
lugar, há a carne e os ossos dos que ficaram. Aqueles que perdem uma ilha, como
Francisco, perdem com ela tudo o que contava deles. Desfazem-se. Resta uma
memória que só se expressa pela oralidade – e a oralidade tem menos valor no
Brasil dos letrados, no universo dos cartórios, em que a justiça legitima o
documento escrito. É do lugar dos que não têm mais mundo que fala Francisco. E
ele fala em torrente, porque é mais rio do que terra. E não é papel.
-
Quando chegaram lá na ilha, o chefe da equipe mandou a gente pegar um tracajá
(quelônio muito apreciado como comida), porque a gente conhecia o rio. Ficaram
só com o papai, que não sabe ler, não sabe nada. A gente foi pegar o tracajá.
Mas a gente não pegou nenhum, não vou mentir. Quando ele foi sair, nós chamemo:
“Vem cá. Cadê a carta de crédito pra nós, que somo filho do local?” Com a carta
de crédito nós comprava um lote pra morar. E eles: “Quando o dinheiro cair na
conta, a carta de crédito de vocês vem junto”. Então tá bom. Nós não conhece
essas coisa, nós não somo dessas coisa, nós somo morador. Você bem sabe que
morador da colônia não é entendido em certas coisa. Ainda mais em negócio de
leitura. Aí o papai ficou lá na ilha e nós viemo no escritório da Norte
Energia. A mulher puxou uma folha branca pra nós. E disse: “Assina aqui ou
então o dinheiro não cai na conta do pai de vocês”. Eu digo: “Pode ser o nome
do papai ou o meu? Porque se for o nome do papai, eu não sei”. Que a gente tem
isso. O nome do papai eu não sei, eu sei só o meu nome mesmo. É a única coisa
que eu sei, da minha cabeça mesmo. Comecei a assinar, ainda errei duas vez, ela
mudou as folha. Falou: “Vai devagar”. Assinei. Digo: “Tá bom?”. Aí fui embora.
Mas aquele papel era só pra 12 mil pro papai, não tinha mais nada. Eles podiam
puxar um papel de leitura, podiam puxar um papel escrevido na minha frente. Mas
leitura eu não sei ler. Faz que nem um burro. Um burro vai, tem uma placa na
frente, ele chega e passa por baixo. Porque morador da colônia, morador da
ilha, morador da zona rural não sabe.
Francisco
tem olho de rio agora. É difícil pra ele, porque acha que homem não tem lágrima
fora. Francisco garante que não se desespera, e diz isso em prosa poética.
-
Porque homem não desespera. Só desespera quando morre. O desespero é a
derradeira morte pro homem.
E
segue na sua agonia com as letras.
-
Pra quem sabe leitura, é rico na leitura, tem saída pra ele. Mas uma pessoa que
não sabe ler não sabe nem conversar. Não sabe. Não sabe nem pra onde correr.
Porque nós não sabe nem onde é a autoridade, onde caçar as autoridade, nem
nada. O pobre é conformado.
Francisco
não parece conformado.
-
O papai não pode trabalhar mais, que nem ocês tão vendo, então eu trabalho, o
meu irmão trabalha. Eu trabalho de 10 real a diária. Você vê o preço da diária
daqui. Eu trabalho de ajudante ali no concreto do bloco que tem aqui. A senhora
entende o que é o concreto do bloco?
Eu
não entendo.
-
É fazer bloco. Fazer bloco lotado com cimento. É o serviço mais pesado que tem
dentro da cidade, enchendo de areia, um dia todinho jogando numa betoneira.
Porque gente pobre não tem outro serviço. Passei fome enquanto não achava esse
trabalho. Cheguei a passar um dia e uma noite sem nada, sem um prato. Sabe como
é maldade? Pra mim é maldade. Nós tudo com fome. Sem nada. Porque lá todo dia
nós dormia de barriga cheia. Todo dia nós almoçava, jantava, merendava. Nós
tinha a nossa brincadeira, a nossa alegria. Fumo expulso de lá e no dia em que
eu não arrumo nada pra comprar janta aqui, passamo fome. Agora eu trabalho
junto com os outro, fazendo bico, sabe como é bico? Não tenho meu serviço fixo.
Eu trabalho pra um, desmanchando casa, trabalho pra outro, assim. Até que enfim
agora a diária tá 50. Eu e meu irmão, o Zé, a gente trabalha assim.
Francisco
pergunta.
-
Nós vamo ser expulso que nem uns bicho bruto no meio do mundo? Nós não somo que
nem cachorro, somo filho de gente. E nós nascemo e se criemo, tudo filho do
lugar. O que fizeram com nós foi assim... Eu não posso nem lhe dizer, porque eu
não entendo desse negócio. Eu não entendo. Isso aí foi assim: eu pego um saco
de bagulho e boto fora. Foi o que fizeram com nós. Eu não tenho nem o que
dizer. Sou um homem sem voz.
A
família está reunida na parte da frente da casa alugada num dos bairros mais
violentos da periferia de Altamira. No “baixão”, como se diz ali, onde eles
temem sair. Eles, para quem uma casa era o dentro e também o fora, era um lugar
inteiro, agora têm medo do fora. Contam que pagam 500 reais de aluguel, mas que
não têm conseguido inteirar o valor. Otávio, o pescador que não pesca, deu a
canoa e o motor para o dono da casa. A maior parte dos 12 mil que receberam da
empresa foi gasta com uma doença no coração de uma das meninas, que levaram
para ser salva em Teresina, “com Deus e os doutor”. Não há cadeira para todos.
Então, o lugar sentado é para o pai, que “sofre da próstata”, e para o filho,
que sustenta a família. A mãe, Maria, fica em pé. A tarde já avança, mas eles
ainda não almoçaram. No fogão, um pouco de feijão chia na panela de pressão. Só
feijão, comprado fiado. Maria chora. Um choro bem quieto, de quem tem pudor de
se mostrar, encostada na porta, querendo sumir.
-
Minhas criança não passava fome lá. Eu toda vida gostei de planta, de criação.
Aqui não tenho terrinha pra trabalhar. A gente anda com fome, porque não tem
onde plantar. E os filho pede comida pra mãe, não pro pai. A pequena diz:
“Mamãe, quero comer. Mamãe, quero comer”. Eu não tenho de onde tirar. Quando a
gente come bem, assim, a gente dorme de noite. Mas, se a gente não come nada,
não dorme”.
Leia a íntegra
aqui:
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