Serginho não era exatamente aquilo que costumamos chamar de “pessoa”.
Pessoas sentem raiva, ódio até.
Fazem intrigas, fuxicam, invejam.
E são capazes de palavras cortantes, apenas para machucar.
Mas não me lembro de ver o Serginho com raiva de alguém.
Ou disposto a ferir alguém.
Não me lembro de vê-lo, nem sequer uma vez, a destilar canalhices, como se fossem provas de “inteligência”.
Havia nele uma integridade e uma alegria de viver muito raras.
Uma paz meio zen.
Um desapego de fama, dinheiro, poder, status.
Coisas pelas quais muitos até pisam no pescoço da própria mãe.
Era generoso e gentil com todo mundo.
Não de maneira falsa, hipócrita, como a gente vê tanto por aí.
Mas com um sorriso, um olhar, um abraço tão amorosos, que dava para sentir que vinham de dentro da alma.
Era como se aceitasse todos como eram, em vez de procurar nos outros meros reflexos de si mesmo.
Mais parecia um espírito cintilante, com uma leve camada corporal.
Não havia nada de fisicamente atraente no Serginho.
A não ser, para quem gosta, aquele jeito meio hippie: calça jeans surrada, chinelos e bolsa de couro, cabelos até os ombros.
Foi assim que o conheci, em 1980, quando trabalhamos no jornal A Província do Pará.
E confesso que me apaixonei perdidamente.
Égua do sujeito inteligente, culto, educado.
Um cavalheiro à moda antiga.
Mas com uma cabeça e um styling do século XXXI.
Irresistível. Simplesmente, irresistível.
Sei lá quantas vezes enchemos a cara, nos bares da vida.
Dividimos gostos, segredos, sonhos, frustrações.
Creio que éramos dois alucinados socialmente administráveis.
Inconformados com valores e costumes, mas sem que conseguíssemos nos insurgir, de fato, contra esta sociedade.
Éramos dois “hippies” apenas nas roupas e no jeito largadão.
Mas jamais escandalizaríamos a fina flor da burguesia, como em Hair.
Porque, bem lá no fundo, queríamos, sim, aceitação social.
Mas se o tempo une, também separa.
Veio a maturidade e as nossas escolhas nos levaram a caminhos opostos.
Há anos já não nos víamos, quando, ontem, o Serginho partiu.
Não para uma aventura mochileira, como tantas que viveu, ou algumas que eu vivi.
Mas para outra dimensão, uma jornada incorpórea.
Que, no caso dele, deve ser um mergulho na mais pura luz.
Jamais esquecerei a primeira vez que meus olhos pousaram naquele rapaz.
Tão diferente, mas tão familiar, como se fosse uma parte oculta de mim.
Nunca tivemos nada físico – não que eu não quisesse.
Mas, em verdade, eram as nossas almas que pareciam se encaixar perfeitamente.
Enlaçadas por sonhos e crenças juvenis, que de há muito deixei para trás.
Pena que não nos vimos uma última vez.
Que não rimos juntos uma última vez.
Mas sei que o meu amigo, que tanto me ensinou sobre mim mesma, agora está em paz.
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O Pastor, Madredeus
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