sábado, 12 de outubro de 2019

Precisamos falar sobre tortura nas penitenciárias do Pará


 


Que espécie de seres somos nós? 

E a quem queremos enganar quando dizemos que fomos feitos à imagem de Deus? 

São essas as perguntas que me vêm à cabeça frente às torturas que estariam ocorrendo nas penitenciárias paraenses, que se encontram sob intervenção federal. 

Há fotos de gente machucada – muito machucada – supostamente devido a tais violências. 

Há relato sobre um preso que teve uma arma enfiada em seu ânus. 

Há relatos de detentas obrigadas a sentar, nuas ou seminuas, em cima de formigueiros ou de fezes de ratos. 

Homens, mulheres, velhos, doentes, deficientes agredidos com spray de pimenta, vassouras, cassetetes, choques elétricos, sem atendimento médico, remédios, comida. 

Talvez você não goste do que vou lhe dizer, mas essas pessoas são iguaizinhas a mim e a você: elas também sentem dor. Elas também gritam, urram de dor. 

Elas também têm pai, mãe, irmãos, mulher, marido, filhos. 

E se fizeram mal a outras pessoas, têm, sim, de pagar por isso. 

Mas não da forma brutal, desumana, covarde, que estaria ocorrendo. 

Nenhum de nós está livre de amanhã ir parar em uma prisão. 

Nenhum de nós sabe nem mesmo o que lhe acontecerá daqui a um minuto, quanto mais nos próximos dias ou anos. 

Não sei se você sabe, mas pelo menos a metade das pessoas que estão nas nossas penitenciárias nem julgada foi.  

Nós não sabemos nem sequer se são inocentes ou culpadas, já que foram enjauladas sem que tivessem direito a um julgamento. 

E se fosse você ou o seu filho nessa situação?

Há décadas que o sistema penal paraense é um horror.  

São milhares de seres humanos espremidos em jaulas imundas, onde proliferam ratos, baratas, doenças e violência. Onde o calor e a sede são insuportáveis. Onde a comida a gente não dá nem pra bicho. 

No entanto, o que se diz é que agora ultrapassamos todos os limites: é TORTURA GENERALIZADA de homens, mulheres, velhos, doentes. 

E eu gostaria de acreditar que tudo não passa de “denúncias infundadas de presos revoltados”. 

Mas 17 procuradores federais assinam uma Ação Civil Pública contendo essas denúncias de tortura nas nossas penitenciárias, com base em uma profusão de relatos, vídeos e fotografias. 

Não, não são relatos “apenas” de presos e seus familiares. 

Há, também, denúncias de advogados, entidades de direitos humanos e até de funcionários do nosso sistema penal, que dizem já nem conseguir dormir direito, devido às crueldades praticadas pelas forças federais de intervenção. 

O Ministério Público Federal e entidades respeitadas, como a OAB e a Sociedade Paraense de Defesa dos Direitos Humanos (SPDDH), querem a apuração do caso. 

Já o Governo Federal e a Superintendência do Sistema Penitenciário do Estado do Pará (Susipe) dizem que nada aconteceu. 

No entanto, uma negativa desse tipo, em um possível episódio tão desumano, não serve para nada. 

Porque, em vez de apenas dizer, é preciso PROVAR que nada aconteceu. 

Segundo o G1, a Justiça Estadual já teria detectado mentiras nos depoimentos de alguns desses detentos. 

Além disso, o Instituto de Perícia Científica Renato Chaves não teria encontrado sinais de violência nos presos que foram examinados. 

No entanto, fico a pensar o que levaria 17 procuradores federais a ajuizarem um processo tão grave, se não existissem elementos mínimos acerca de toda essa crueldade. 

Fico a pensar que conspiração extraordinária seria necessária, para envolver, além desses 17 procuradores, entidades como a OAB, SPDDH e o Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (MNPCT) - isso sem falar no juiz que ordenou o afastamento do coordenador das forças federais de intervenção.

Tudo isso só reforça em mim a certeza de que é preciso ir muito mais fundo nessa apuração, talvez até com a ajuda de organizações internacionais. 

Até porque escândalos desse tipo costumam envolver, além do medo de denunciar, articulações que escapam ao distinto público. 

E todos nós que conservamos um mínimo de Humanidade temos, sim, de cobrar essa apuração. 

Uma investigação que não deixe pedra sobre pedra, para que não reste nem sombra de dúvida sobre o que de fato vem ocorrendo nas penitenciárias do nosso Pará. 


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Veja um trecho da reportagem do El País: 


“Um grupo composto por representantes da OAB do Pará, do MPF e da Sociedade Paraense de Defesa dos Direitos Humanos esteve em mais de uma ocasião no presídio feminino, localizado em Ananindeua. Escutaram relatos sobre o dia em que os agentes da FTIP (a força federal de intervenção) entraram na unidade às 4 horas da manhã "soltando bombas, espirrando spray de pimenta e colocando as presas para fora das celas apenas de roupas íntimas".

Algumas delas permaneceram nuas na frente de agentes federais homens. Muitas também teriam apanhado de cassetetes. As que desmaiaram teriam sido arrastadas e acordadas com spray de pimenta na cara —algumas chegaram a perder a visão, segundo relataram. As mulheres também teriam sido obrigadas a sentar, nuas ou de peças íntimas, sobre um formigueiro em dos pavilhões. Em outras ocasiões, foram agredidas com choques elétricos, tiveram que sentar sobre urina e fezes de rato e foram chamadas de "porcas" e "sujas" pelos agentes. Muitas estavam com hematomas e cuspindo sangue durante a visita das entidades.  

Os procuradores também escutaram servidores estaduais que trabalham no CTM II, onde, segundo contam, os presos são "tranquilos" e nunca desrespeitaram os agentes penitenciários ou fizeram rebelião. Porém, o horror chegou junto com os agentes federais da FTIP, segundo relatam os próprios servidores. "Começamos a escutar urros, gritos, foi um horror. Nunca tínhamos pensado em presenciar aquilo", conta um funcionário na condição de anonimato”. 


Ainda na reportagem do El País, trechos de relatos colhidos pelo MPF sobre a brutalidade que teria tomado conta das nossas casas penais:  


Relato em reunião de familiares dos presos

"Tem pessoas com deficiência física e mental que estão maltratadas, como, por exemplo, um preso com deficiência intelectual, outro com um pulmão só e outro com uma perna só. Estão apanhando, mesmo muitos dias após a intervenção, e sem terem reagido a nada".


Preso conta detalhes de rotina ao MPF 

"Botaram todos no campo de futebol, nos mandaram tirar as roupas, ficamos nus de 07h30 até 16h45. Nesse período passamos por tortura, pois estávamos no sol quente, espirravam spray na gente, quebraram muitos cabos de vassoura nas nossas costas. Como estávamos nus, e fomos obrigados a ficar enfileirados encostados uns nos outros, os órgãos sexuais de um preso encostava no da frente, o que causou muito constrangimento".

"Eu vi eles [dois agentes] pegando o cabo de uma doze e introduzindo na bunda de um rapaz. (...) Tentaram primeiro introduzir no ânus dele um cabo de enxada, mas não conseguiram, aí conseguiram com o cabo da doze; inclusive, eu vi esse rapaz saindo de ambulância e os médicos atendendo ele".

"No outro dia, um colega meu comeu um pacote de bolacha que ele encontrou no chão, e todos estávamos com fome, pois não tínhamos comido, e um agente federal (...), que era o que mais torturava, espirrou spray de pimenta no rosto de um preso e mandou o rapaz esfregar no rosto. Quanto mais se passa a mão no rosto, mais se sente a dor. Nós vimos isso e eu fui questionar com o agente federal sobre isso. Ele pegou uma tábua com prego, levantou a cabeça do prego, e bateu com o prego no meu pé, ou seja, ele inseriu o prego no meu pé direito. (...) No dia seguinte, em vez de eu ter atendimento médico, me torturam (me deram muita porrada e spray) e jogaram de volta pra dentro do bloco novamente, sem atendimento. Depois disso, cancelaram nossa alimentação por quatro dias".

"Na nossa alimentação vem tapuru, lavas, camisinha, luva derretida, pena de galinha, frango cru. A gente come a hora que eles querem, eles pagam [entregam] comida a hora que eles querem. Somos ameaçados toda hora, com spray de pimenta. Estavam fazendo a gente se beijar, homens com homens. Isso aconteceu com seis presos. Eram agentes federais que faziam isso. Chamavam os presos lá na frente e faziam os presos se beijar na frente do resto".


Servidor estadual descreve horror 

"Os sprays de pimenta são jogados em dias seguidos, em momentos distintos, sem qualquer prévia reação dos presos. Os agentes federais disseram que o spray de pimenta era uma forma dos presos saírem das celas. É um negócio complemente desmedido".

"São agressões generalizadas, graves, e com a conivência do poder Público, do Estado. Parece que fizeram uma seleção de psicopatas, e deram o direito a eles se regozijarem nos presos – o que a gente vê é a banalização do mal".

"Há violência física, psicológica. Sempre tem as determinações: 'A SUSIPE não manda nada, quem manda aqui?' e os presos são obrigados a gritar: 'É a força!'".

"Antes, havia tortura? Havia sim, mas era pontual, isolado. Depois da intervenção federal, é generalizado. Os servidores não estão conseguindo dormir, estão tendo pesadelos; os gritos ficam na nossa cabeça. Não é uma questão de apreço, não é uma questão de gostar dos presos, é uma questão de humanidade, de preservação da dignidade do ser humano"


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Abaixo, nota oficial que está no site da Susipe:


NOTA OFICIAL (09/10/2019)

 
A Superintendência do Sistema Penitenciário do Estado do Pará vem a público REPUDIAR as graves imputações de tortura nas unidades prisionais, sob a atuação da Força Tarefa de Intervenção Penitenciária, a qual se consubstancia na adoção técnica e legítima de protocolos administrativo-operacionais instituídos pela FTIP, visando a padronização e harmonização dos procedimentos de segurança e das rotinas das equipes de serviço do Complexo Penitenciário de Santa Izabel (Americano), Centro de Reeducação Feminino e Central de Triagem Metropolitana II. 

Reputa-se necessário esclarecer que de todas as indicações para realização de exames de corpo de delito, requisitadas seja pelo Conselho Penitenciário, Ministério Público Federal, ou por demais organismos fiscalizadores, nenhum resultado enveredou para a constatação de lesões provocadas por maus tratos ou atos de tortura, como se tem vislumbrado em alguns meios de comunicação. 

Ademais, a Superintendência elucida que é totalmente inverídica a alegação de presas seminuas terem sido coagidas a sentar em formigueiro e oportunamente esclarece que dentre as 64 (sessenta e quatro) presas submetidas a exame, não subsiste resultado indicativo de lesão advinda de insetos, cabendo ressaltar que o único caso que apontaria para essa linha de raciocínio seria a da interna T.R.M.S, pertencente a organização criminosa de atuação nacional, que apresenta hematoma no glúteo esquerdo, devido a injetável administrado em momento anterior ao seu ingresso no sistema prisional, informação corroborada pela própria presa aquando de sua condução ao Instituto Médico Legal. 

A Superintendência reafirma seu compromisso com as ações estratégicas desenvolvidas pela Força Tarefa, cuja composição conta com abnegados servidores penitenciários advindos de 20 (vinte) estados brasileiros, com formação técnica rigorosa e criteriosa, visando o estabelecimento de procedimentos de retomada do controle estatal das unidades prisionais. 

Pela primeira vez, em 94 anos de Susipe, os presos provisórios foram separados dos sentenciados e transferidos para unidades diferentes. Além disso, em ato inédito, foram isolados 300 chefes do crime organizado dentro de uma cadeia. Desde a chegada da FTIP no Pará, o índice de criminalidade caiu de 26% para 38%: 50% em Belém e 58% em Ananindeua. A quem interessa o crocitar dos corvos? 

Forte nessas razões, a Superintendência do Sistema Penitenciário reitera seu repúdio às infundadas narrativas que aduzem a prática do crime de tortura no âmbito das unidades prisionais sob atuação da FTIP e elucida que não se quedará inerte quanto aos esclarecimentos necessários e adoção das providências administrativas e judiciais atinentes ao caso.

JARBAS VASCONCELOS DO CARMO
Secretário Extraordinário de Estado para Assuntos Penitenciários
Superintendência do Sistema Penitenciário do Estado do Pará

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