Que espécie de seres somos nós?
E a quem queremos enganar quando dizemos que fomos
feitos à imagem de Deus?
São essas as perguntas que me vêm à cabeça frente às torturas
que estariam ocorrendo nas penitenciárias paraenses, que se encontram sob
intervenção federal.
Há fotos de gente machucada – muito machucada –
supostamente devido a tais violências.
Há relato sobre um preso que teve uma arma enfiada em seu
ânus.
Há relatos de detentas obrigadas a sentar, nuas ou
seminuas, em cima de formigueiros ou de fezes de ratos.
Homens, mulheres, velhos, doentes, deficientes
agredidos com spray de pimenta, vassouras, cassetetes, choques elétricos, sem
atendimento médico, remédios, comida.
Talvez você não goste do que vou lhe dizer, mas essas
pessoas são iguaizinhas a mim e a você: elas também sentem dor. Elas também
gritam, urram de dor.
Elas também têm pai, mãe, irmãos, mulher, marido,
filhos.
E se fizeram mal a outras pessoas, têm, sim, de pagar
por isso.
Mas não da forma brutal, desumana, covarde, que
estaria ocorrendo.
Nenhum de nós está livre de amanhã ir parar em uma prisão.
Nenhum de nós sabe nem mesmo o que lhe acontecerá
daqui a um minuto, quanto mais nos próximos dias ou anos.
Não sei se você sabe, mas pelo menos a metade das
pessoas que estão nas nossas penitenciárias nem julgada foi.
Nós não sabemos nem sequer se são inocentes ou culpadas,
já que foram enjauladas sem que tivessem direito a um julgamento.
E se fosse você ou o seu filho nessa situação?
Há décadas que o sistema penal paraense é um horror.
São milhares de seres humanos espremidos em jaulas
imundas, onde proliferam ratos, baratas, doenças e violência. Onde o calor e a
sede são insuportáveis. Onde a comida a gente não dá nem pra bicho.
No entanto, o que se diz é que agora ultrapassamos
todos os limites: é TORTURA GENERALIZADA de homens, mulheres, velhos, doentes.
E eu gostaria de acreditar que tudo não passa de
“denúncias infundadas de presos revoltados”.
Mas 17 procuradores federais assinam uma Ação Civil
Pública contendo essas denúncias de tortura nas nossas penitenciárias,
com base em uma profusão de relatos, vídeos e fotografias.
Não, não são relatos “apenas” de presos e seus
familiares.
Há, também, denúncias de advogados, entidades de
direitos humanos e até de funcionários do nosso sistema penal, que dizem já nem
conseguir dormir direito, devido às crueldades praticadas pelas forças federais
de intervenção.
O Ministério Público Federal e entidades respeitadas, como
a OAB e a Sociedade Paraense de Defesa dos Direitos Humanos (SPDDH), querem a apuração do
caso.
Já o Governo Federal e a Superintendência do Sistema
Penitenciário do Estado do Pará (Susipe) dizem que nada aconteceu.
No entanto, uma negativa desse tipo, em um possível
episódio tão desumano, não serve para nada.
Porque, em vez de apenas dizer, é preciso PROVAR que nada
aconteceu.
Segundo o G1, a Justiça Estadual já teria detectado
mentiras nos depoimentos de alguns desses detentos.
Além disso, o Instituto de Perícia Científica Renato
Chaves não teria encontrado sinais de violência nos presos que foram examinados.
No entanto, fico a pensar o que levaria 17
procuradores federais a ajuizarem um processo tão grave, se não existissem
elementos mínimos acerca de toda essa crueldade.
Fico a pensar que conspiração extraordinária seria
necessária, para envolver, além desses 17 procuradores, entidades como a OAB,
SPDDH e o Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (MNPCT) - isso sem falar no juiz que ordenou o afastamento do coordenador das forças federais de intervenção.
Tudo isso só reforça em mim a certeza de que é preciso
ir muito mais fundo nessa apuração, talvez até com a ajuda de organizações
internacionais.
Até porque escândalos desse tipo costumam envolver,
além do medo de denunciar, articulações que escapam ao distinto público.
E todos nós que conservamos um mínimo de Humanidade temos,
sim, de cobrar essa apuração.
Uma investigação que não deixe pedra sobre pedra, para
que não reste nem sombra de dúvida sobre o que de fato vem ocorrendo nas
penitenciárias do nosso Pará.
..............
Veja um trecho da reportagem do El País:
“Um grupo composto por representantes da OAB do Pará,
do MPF e da Sociedade Paraense de Defesa dos Direitos Humanos esteve em mais de
uma ocasião no presídio feminino, localizado em Ananindeua. Escutaram relatos
sobre o dia em que os agentes da FTIP (a força federal de intervenção)
entraram na unidade às 4 horas da manhã "soltando bombas, espirrando spray
de pimenta e colocando as presas para fora das celas apenas de roupas
íntimas".
Algumas delas permaneceram nuas na frente de agentes federais
homens. Muitas também teriam apanhado de cassetetes. As que desmaiaram teriam
sido arrastadas e acordadas com spray de pimenta na cara —algumas chegaram a
perder a visão, segundo relataram. As mulheres também teriam sido obrigadas a
sentar, nuas ou de peças íntimas, sobre um formigueiro em dos pavilhões. Em
outras ocasiões, foram agredidas com choques elétricos, tiveram que sentar
sobre urina e fezes de rato e foram chamadas de "porcas" e
"sujas" pelos agentes. Muitas estavam com hematomas e cuspindo sangue
durante a visita das entidades.
Os procuradores também escutaram servidores estaduais
que trabalham no CTM II, onde, segundo contam, os presos são
"tranquilos" e nunca desrespeitaram os agentes penitenciários ou
fizeram rebelião. Porém, o horror chegou junto com os agentes federais da FTIP,
segundo relatam os próprios servidores. "Começamos a escutar urros,
gritos, foi um horror. Nunca tínhamos pensado em presenciar aquilo", conta
um funcionário na condição de anonimato”.
Ainda na reportagem do El País, trechos de
relatos colhidos pelo MPF sobre a brutalidade que teria tomado conta das nossas casas penais:
Relato em reunião de familiares dos presos
"Tem pessoas com deficiência física e mental que
estão maltratadas, como, por exemplo, um preso com deficiência intelectual,
outro com um pulmão só e outro com uma perna só. Estão apanhando, mesmo muitos
dias após a intervenção, e sem terem reagido a nada".
Preso conta detalhes de rotina ao MPF
"Botaram todos no campo de futebol, nos mandaram
tirar as roupas, ficamos nus de 07h30 até 16h45. Nesse período passamos por
tortura, pois estávamos no sol quente, espirravam spray na gente, quebraram
muitos cabos de vassoura nas nossas costas. Como estávamos nus, e fomos
obrigados a ficar enfileirados encostados uns nos outros, os órgãos sexuais de
um preso encostava no da frente, o que causou muito constrangimento".
"Eu vi eles [dois agentes] pegando o cabo de uma
doze e introduzindo na bunda de um rapaz. (...) Tentaram primeiro introduzir no
ânus dele um cabo de enxada, mas não conseguiram, aí conseguiram com o cabo da
doze; inclusive, eu vi esse rapaz saindo de ambulância e os médicos atendendo
ele".
"No outro dia, um colega meu comeu um pacote de
bolacha que ele encontrou no chão, e todos estávamos com fome, pois não
tínhamos comido, e um agente federal (...), que era o que mais torturava,
espirrou spray de pimenta no rosto de um preso e mandou o rapaz esfregar no
rosto. Quanto mais se passa a mão no rosto, mais se sente a dor. Nós vimos isso
e eu fui questionar com o agente federal sobre isso. Ele pegou uma tábua com
prego, levantou a cabeça do prego, e bateu com o prego no meu pé, ou seja, ele
inseriu o prego no meu pé direito. (...) No dia seguinte, em vez de eu ter
atendimento médico, me torturam (me deram muita porrada e spray) e jogaram de
volta pra dentro do bloco novamente, sem atendimento. Depois disso, cancelaram
nossa alimentação por quatro dias".
"Na nossa alimentação vem tapuru, lavas,
camisinha, luva derretida, pena de galinha, frango cru. A gente come a hora que
eles querem, eles pagam [entregam] comida a hora que eles querem. Somos
ameaçados toda hora, com spray de pimenta. Estavam fazendo a gente se beijar,
homens com homens. Isso aconteceu com seis presos. Eram agentes federais que
faziam isso. Chamavam os presos lá na frente e faziam os presos se beijar na
frente do resto".
Servidor estadual descreve horror
"Os sprays de pimenta são jogados em dias
seguidos, em momentos distintos, sem qualquer prévia reação dos presos. Os
agentes federais disseram que o spray de pimenta era uma forma dos presos
saírem das celas. É um negócio complemente desmedido".
"São agressões generalizadas, graves, e com a
conivência do poder Público, do Estado. Parece que fizeram uma seleção de
psicopatas, e deram o direito a eles se regozijarem nos presos – o que a gente
vê é a banalização do mal".
"Há violência física, psicológica. Sempre tem as
determinações: 'A SUSIPE não manda nada, quem manda aqui?' e os presos são
obrigados a gritar: 'É a força!'".
"Antes, havia tortura? Havia sim, mas era
pontual, isolado. Depois da intervenção federal, é generalizado. Os servidores
não estão conseguindo dormir, estão tendo pesadelos; os gritos ficam na nossa
cabeça. Não é uma questão de apreço, não é uma questão de gostar dos presos, é
uma questão de humanidade, de preservação da dignidade do ser humano"
......................
Leia a reportagem do El Pais: https://brasil.elpais.com/brasil/2019/10/08/politica/1570570500_263393.html
Leia a reportagem do G1: https://g1.globo.com/pa/para/noticia/2019/10/09/acao-do-mpf-expoe-indicios-de-tortura-maus-tratos-e-abusos-durante-intervencao-federal-em-presidios-no-pa.ghtml
Aqui, a íntegra da ação do MPF: https://drive.google.com/file/d/1O6tJh6kwniPrb3lskpGXX6BQLYGoansq/view?usp=sharing
Abaixo, nota oficial que está no site da
Susipe:
NOTA OFICIAL (09/10/2019)
A Superintendência do Sistema Penitenciário do Estado
do Pará vem a público REPUDIAR as graves imputações de tortura nas unidades prisionais,
sob a atuação da Força Tarefa de Intervenção Penitenciária, a qual se
consubstancia na adoção técnica e legítima de protocolos
administrativo-operacionais instituídos pela FTIP, visando a padronização e
harmonização dos procedimentos de segurança e das rotinas das equipes de
serviço do Complexo Penitenciário de Santa Izabel (Americano), Centro de
Reeducação Feminino e Central de Triagem Metropolitana II.
Reputa-se necessário esclarecer que de todas as
indicações para realização de exames de corpo de delito, requisitadas seja pelo
Conselho Penitenciário, Ministério Público Federal, ou por demais organismos
fiscalizadores, nenhum resultado enveredou para a constatação de lesões
provocadas por maus tratos ou atos de tortura, como se tem vislumbrado em
alguns meios de comunicação.
Ademais, a Superintendência elucida que é totalmente
inverídica a alegação de presas seminuas terem sido coagidas a sentar em
formigueiro e oportunamente esclarece que dentre as 64 (sessenta e quatro)
presas submetidas a exame, não subsiste resultado indicativo de lesão advinda
de insetos, cabendo ressaltar que o único caso que apontaria para essa linha de
raciocínio seria a da interna T.R.M.S, pertencente a organização criminosa de
atuação nacional, que apresenta hematoma no glúteo esquerdo, devido a injetável
administrado em momento anterior ao seu ingresso no sistema prisional,
informação corroborada pela própria presa aquando de sua condução ao Instituto
Médico Legal.
A Superintendência reafirma seu compromisso com as
ações estratégicas desenvolvidas pela Força Tarefa, cuja composição conta com
abnegados servidores penitenciários advindos de 20 (vinte) estados brasileiros,
com formação técnica rigorosa e criteriosa, visando o estabelecimento de
procedimentos de retomada do controle estatal das unidades prisionais.
Pela primeira vez, em 94 anos de Susipe, os presos
provisórios foram separados dos sentenciados e transferidos para unidades
diferentes. Além disso, em ato inédito, foram isolados 300 chefes do crime
organizado dentro de uma cadeia. Desde a chegada da FTIP no Pará, o índice de
criminalidade caiu de 26% para 38%: 50% em Belém e 58% em Ananindeua. A quem
interessa o crocitar dos corvos?
Forte nessas razões, a Superintendência do Sistema
Penitenciário reitera seu repúdio às infundadas narrativas que aduzem a prática
do crime de tortura no âmbito das unidades prisionais sob atuação da FTIP e
elucida que não se quedará inerte quanto aos esclarecimentos necessários e
adoção das providências administrativas e judiciais atinentes ao caso.
JARBAS VASCONCELOS DO CARMO
Secretário Extraordinário de Estado para Assuntos
Penitenciários
Superintendência do
Sistema Penitenciário do Estado do Pará
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