I
Vocês sabem o que havia em comum entre os jornalistas Frank Siqueira, Euclides Farias, Ronald Junqueiro e João Carlos Pereira?
Nenhum possuía diploma de Jornalismo.
No entanto, nenhum foi alvo das “raivinhas” de alguns diplomados, como acontece comigo.
Conheci o Frank Siqueira em 1980, quando fui trabalhar no jornal “A Província do Pará”.
Ao que me disse, era técnico em Contabilidade, o equivalente ao Ensino Médio.
Mesma escolaridade do Euclides Farias, que chegou a frequentar a Faculdade de Letras, mas não se formou.
Conhecemo-nos em meados da década de 1980, quando trabalhamos, como repórteres, no jornal O Liberal.
Mesma época e jornal em que conheci o João Carlos Pereira, então um “foca”, que era formado em Letras.
Já o Ronald Junqueiro, salvo engano, era formado em Administração e iniciou a carreira jornalística na década de 1970, na TV Liberal.
É óbvio que não quero me comparar a esses monstros do Jornalismo.
E isso, em verdade, nem é relevante.
O que importa é qual o CRITÉRIO para o exercício dessa profissão.
É o diploma específico?
É qualquer diploma de nível superior?
Ou é qualquer escolaridade, desde que se trate de um homem?
Ora, no primeiro caso, nenhum desses quatro jornalistas se enquadrava.
No segundo, o Frank Siqueira e o Euclides Farias não se enquadravam.
Da mesma forma que outros jornalistas homens, que exerceram ou ainda exercem essa profissão, sem quaisquer problemas.
Então, por que é que eu, que possuo tempo igual ou maior de exercício profissional, sou alvo de tamanha discriminação?
Na verdade, toda essa “raivinha” contra mim foi propagada por um grupelho de jornalistas tucanos.
Tudo devido às reportagens investigativas que publiquei sobre os governos do PSDB, e que nunca foram desmentidas.
Uns até protestaram – vejam só! - quando me filiei ao Sinjor, há uns 15 anos, ao mesmo tempo em que reivindicaram a sindicalização de jornalistas homens sem diploma, “aceitáveis” aos tucanos.
Sinal de que a preocupação nunca foi o diploma de Jornalismo.
Mas sim a manipulação machista e politiqueira desse documento, para tentar me banir da profissão.
No entanto, o que mais me surpreende é que tantos jornalistas adiram, tão facilmente, a comportamentos medievais.
Alguém grita: olhem, uma bruxa!
E todos correm para queimar o espantalho, o satanás da ocasião.
E não só.
Como parte fundamental dessa “caça à bruxa”, esses filhotes de Torquemada iludem os coleguinhas com a “PEC do Diploma”.
O graal que garantirá aos diplomados fartura de empregos.
Com robustos salários e maravilhosas condições de trabalho.
Afinal, a “PEC do Diploma” expulsará a “serpente”, a “ignorante”, a “despreparada”, a “sem-ética” (como esses tucanos passaram a me classificar, depois que deixei o governo deles...) que “ousou” invadir o espaço sagrado dos diplomados.
É assustador que tantos coleguinhas se deixem enganar por magias, assombrações e o clássico antropológico do “nós” e “eles”.
Tenho 64 anos e completei, no mês passado, 45 de Jornalismo.
Comecei como estagiária, em março de 1980.
E em 1º de Maio daquele ano – sem parentes importantes ou amigos influentes – fui contratada como repórter, porque perceberam o meu potencial para essa profissão.
Trabalhei na Província, no Liberal, no Diário do Pará, na Rádio Cultura, em assessorias de imprensa de vereador, deputado, senador e Governo do Estado; criei um blog de Jornalismo Investigativo, o primeiro a emplacar reportagens nas manchetes dos grandes jornais paraenses.
E agora vejo esses meninos e meninas, que ainda não tinham nem nascido quando comecei a trabalhar como jornalista, tentando me expulsar dessa profissão.
E ainda por cima, manipulados por um punhado de abutres.
Ao longo desses anos, houve gente que ligou para diretor de órgão público, pedindo a minha exoneração de Assessoria de Imprensa, por não ser diplomada; gente que protestou contra a minha filiação ao Sinjor; gente que foi contar a diretor de redação que não possuo diploma de Jornalismo.
Desconheço qualquer jornalista homem, com igual escolaridade e tempo de profissão, que tenha passado por isso.
II
Na verdade, restam bem poucos jornalistas formados a ferro e fogo nas redações...
Oriundos de uma época em que o Jornalismo era movido à coragem, garra e tesão.
Um tempo em que era bem mais perceptível a compreensão de que não somos meros digitadores, como tão bem resumiu Martin Baron.
Mas profissionais que precisam esquadrinhar as muitas versões dos fatos, em vez de se contentarem com meras palavras.
Afinal, todo Jornalismo é investigativo.
A notícia é o confronto entre evidências, documentos, fatos, e não meros dizeres ou querências.
É a estruturação lógica de fatos devidamente apurados e contextualizados, de maneira a que faça sentido, e o distinto público possa acompanhar o seu desenvolvimento.
É o discurso de uma cosmovisão: a nossa.
O que é um impeditivo radical à mitológica “neutralidade”.
Eis que é essa cosmovisão a determinar até mesmo a maneira como enxergamos este ou aquele fato; as vozes que trazemos para dentro de uma matéria; as palavras que escolhemos para a construção textual.
III
Nós, os não-diplomados, praticamente desaparecemos dos grandes veículos não apenas porque a maioria se aposentou ou morreu.
Mas porque as empresas passaram a exigir, cada vez mais, o diploma de Jornalismo, para a contratação.
Como, aliás, previu o STF, em 2009, ao derrubar a exigência do diploma, para o exercício profissional.
Tivemos uma ruptura da transmissão intergeracional de conhecimentos, que ajudou a formar os jornalistas, ao longo de décadas.
Isso empobreceu as redações; guindou jovens, prematuramente, a posições de comando.
E também tornou praticamente impossível alguém se iniciar nessa profissão, sem antes passar por uma faculdade.
Não, tudo isso não decorreu do “cerco” dos diplomados à entrada de não-diplomados nas redações – e é muita ingenuidade dos coleguinhas, se pensam assim.
Isso foi uma decisão das empresas, para baratear custos e aumentar o controle sobre as redações.
No entanto, mesmo que ainda existisse essa corrente intergeracional, não acredito que alguém conseguisse iniciar-se, hoje, nessa profissão, sem um curso superior.
Técnica, teoria e a própria Sociedade se tornaram demasiado complexas.
Creio que nem mesmo os quatro grandes, que citei no início desta postagem, ousariam uma incursão dessas.
É, o tempo voa...
IV
Então, se os não-diplomados praticamente desaparecemos das redações, cabe perguntar: como estão o mercado de trabalho, o Jornalismo e tudo o mais que diziam que aviltávamos?
Há mais empregos, melhores salários e condições de trabalho?
Os jornalistas possuem mais poder sobre o conteúdo dos noticiários?
A qualidade e a ética melhoraram?
O Jornalismo avançou, ou está se tornando, cada vez mais, mero entretenimento?
Os jornais estão repletos de notícias importantes e grandes reportagens, ou de anúncios, releases, calhaus e matérias pagas?
É angustiante que jornalistas não se façam perguntas básicas, para a análise dos maremotos que enfrentamos.
Que deixem de lado os fatos e prefiram acreditar em vendedores de banha de cobra.
Mas como nunca fui candidata à “dulcíssima e frágil donzela”, insistirei, sempre, em dizer aquilo que os que sonham não querem ouvir.
V
Os problemas do nosso mercado de trabalho e da nossa profissão nunca advieram desta disputa que só serviu para dividir a categoria: o “ter ou não diploma”.
Se adviessem, teriam desaparecido, ou ao menos diminuído, com o quase desaparecimento dos não-diplomados das redações, ao invés de assumirem proporções inimagináveis há 50 anos.
Em primeiro lugar, precisamos entender que somos uma categoria singular e estratégica.
Trabalhamos com uma das principais fontes do Poder, base de todas as transformações sociais: a informação.
Ao sistema em que vivemos, interessa que soframos uma espécie de esmagamento intelectual, a fim de que sejamos intelectuais pela metade.
Apenas o necessário para a produção do noticiário.
Mas sem o mínimo de condições materiais para pensar, ler, estudar e desenvolver o senso crítico.
É por isso que somos, desde sempre, pessimamente remunerados – no Brasil e, possivelmente, na maior parte do mundo.
Para que tenhamos de nos dividir entre dois, três, quatro empregos ou serviços, trabalhando de domingo a domingo, da manhã à noite, se quisermos levar para casa um rendimento minimamente digno.
Nossas energias e a nossa capacidade intelectual têm de ser devidamente drenadas na luta pela sobrevivência.
-Para evitar o confronto a que levaria o senso crítico: a ideologia que nos foi introjetada versus as nossas origens, experiências e pertença a uma classe social.
-Para que sejamos mais dóceis à reprodução do discurso do sistema.
-Para que não percebamos o poder que podemos somar à luta dos trabalhadores, graças ao nosso domínio técnico da coleta e uso da informação.
É nessa situação de esmagamento intelectual em que vive a quase totalidade da categoria.
Mas como se não bastasse a exploração decorrente da nossa singularidade, há a exploração estrutural do Capitalismo.
E são as crises e transformações desse sistema que estão levando, há décadas, à dramática redução dos postos de trabalho nas empresas jornalísticas, com a exploração ainda mais acentuada daqueles que ficam.
Tudo é mercadoria.
Inclusive a informação e eu e vocês, em nossa força de trabalho.
Tudo objetiva o lucro dos donos do capital econômico.
E a corrida tecnológica alucinante, necessária à sobrevivência desse sistema, prepondera até mesmo sobre a nossa sanidade, ao levar ao limite a própria adaptabilidade humana.
VI
Infelizmente, não existem fadas, milagres e nem mesmo assombrações: este é um mundo tão somente humano.
E o Capitalismo, de certa forma, é o espelho dos predadores que somos...
Com ou sem diploma, os “passaralhos” continuarão, assim como os péssimos salários.
E se essa categoria conseguisse enxergar essa disputa de maneira menos apaixonada, já teria percebido isso.
De um lado, as grandes empresas de comunicação continuam a enfrentar dificuldades para recompor os seus lucros.
De outro, temos o encolhimento do nosso mercado formal de trabalho, ao mesmo tempo em que milhares de graduados em Jornalismo são lançados nesse mercado, a cada ano.
Não é preciso ser expert em Economia ou Administração, para perceber que, nesse contexto, não há como esperar melhorias nos salários e condições de trabalho das grandes empresas, nos próximos anos.
Ainda mais com o avanço da IA, que está levando à substituição de jornalistas por robôs, no Brasil e em outros países.
É a percepção de todos esses fatores a fazer com que muitos jornalistas migrem para assessorias de imprensa e outras atividades.
E que se busque reserva de mercado para atividades que estão a surgir na internet, mas que, às vezes, apresentam precariedade ainda maior do que as redações.
Sem falar que, muitas vezes, nem Jornalismo propriamente são.
Então, o que fazer?
Penso que em vez de gastar energias com bodes expiatórios, é preciso construir alternativas sustentáveis de Jornalismo independente.
É preciso ir mais além, nas experiências que temos hoje.
Quem sabe através de pequenas cooperativas, com Jornalismo Nômade, Jornalismo Fast News, Jornalismo à escolha, com enlaces internacionais, inclusive financeiros.
Para explorar não apenas segmentos como o Turismo, mas situações sociais, políticas, econômicas, em vários pontos do mundo, até sob o olhar de jornalistas de várias nacionalidades.
Ou, quem sabe, até buscando a aprovação de um fundo público de Comunicação, com repasses compulsórios, sob pena de improbidade administrativa, para financiar veículos jornalísticos alternativos.
Afinal, a sociedade precisa encarar o Jornalismo como aquilo que de fato é: um serviço público fundamental; um direito de todos os cidadãos.
Não acredito em soluções individuais. Mas apenas coletivas. E, de preferência, internacionais.
Nos próximos anos, é provável que tenhamos uma redução ainda mais dramática dos postos de trabalho, nas grandes empresas.
Mesmo quem souber pensar, ler e escrever muito bem terá dificuldade para se manter nelas, a fazer Jornalismo.
A aposta delas deverá ser, cada vez mais, no entretenimento, no espetáculo.
A nossa tem de ser na Sociedade.
Que, certamente, quererá do Jornalismo muito mais do que o Capitalismo está tentando lhe oferecer.
FUUUIIIII!!!!!