segunda-feira, 18 de janeiro de 2021

Meditações sobre o universo mítico dos minions


 


Vai se tornando cada vez mais corriqueiro afirmar que bolsominions e trumpminions são "criaturas malignas”.

É claro que é reconfortante imaginar que apenas “monstros” se acumpliciam de genocídios.

Uma discussão que nem é nova, aliás: após a Segunda Guerra Mundial foram várias as pesquisas para compreender a participação ou passividade de tanta gente no Holocausto.

A figura do “monstro” ou do “ente maligno” é básica no reducionismo maniqueísta e uma velha conhecida da Antropologia.

É uma simplificação perigosa, especialmente diante desse fenômeno de massas que estamos a vivenciar: uma espécie de síndrome mitológica, que, no futuro, a Ciência terá de recorrer a várias áreas do Conhecimento, para “diagnosticar”.

Minions não são entes “malignos”, “demoníacos”: são seres humanos que perderam a capacidade de distinguir entre a fantasia e a realidade.

Não, não são psicóticos; é bem mais complexo do que isso.

Naqueles que preferem argumentar, em vez de apenas xingar, é possível perceber um fio condutor lógico, uma não-fragmentação do raciocínio, que lhes permite até exibir um comportamento dito “normal”.

O problema é que essa lógica é baseada em um universo mitológico; no “território do sagrado” em que se encontram aprisionados e onde tudo é possível, especialmente o que sabemos absurdo.

Recentemente, uma bolsominion famosa passou nove dias internada e quase, quase teve de ser entubada, devido a problemas respiratórios causados pela covid-19. Mas, ao deixar o hospital, disse que teve apenas sintomas “médios”, porque havia tomado ivermectina.

Perceberam? Há uma lógica, uma tentativa de racionalização, só que para explicar uma coisa que nunca existiu. Os sintomas dela não foram “médios”: ela quase foi entubada! E ivermectina, um medicamento contra vermes, não tem qualquer eficácia contra a covid-19.

A mesma lógica calcada na mitificação pôde ser vista no “Acampamento dos 300”, em Brasília; e naquele “cavaleiro templário”, convocando manifestações dos bolsominions, há alguns meses.  

No entanto, ainda mais delirante talvez tenha sido a postura dos Trumpminions que invadiram o Congresso norte-americano.

Muitos deles até tiraram fotos e espalharam nas redes sociais, como se não estivessem fazendo nada de mais, ou como se estivessem até a realizar “um feito heroico”.

Só que as mesmíssimas fotos já levaram à demissão de vários deles e servem de provas às várias acusações criminais que enfrentam e que poderão lhes custar vários anos de cadeia.

Mesmo assim, eles parecem seguir sem entender a dimensão do que fizeram (leia essa interessante matéria do El País sobre os “patriotas” que invadiram o Capitólio: https://brasil.elpais.com/internacional/2021-01-18/os-patriotas-que-invadiram-o-congresso-dos-estados-unidos.html).

Em verdade, é como se essas pessoas tivessem sido abduzidas por um universo paralelo, inacessível a qualquer argumento calcado na realidade, mesmo diante de grandes traumas emocionais.

Há algumas semanas, um amigo me disse uma coisa, que me fez pensar sobre isso: “essas pessoas têm saudades de um passado que, na verdade, nunca existiu”.

Pois é: é a "terra sem males", o paraíso perdido de grande parte das mitologias.

Salvo engano, ainda no começo do século passado, a nossa expectativa de vida era de apenas 30 anos, 40 anos. A fome, a falta de saneamento, de remédios, vacinas e informação matavam crianças e adultos que nem moscas, muito mais do que hoje.

Até quase o final do século 19, mesmo em uma cidade como o Rio de Janeiro, as pessoas almoçavam às 8 da manhã, jantavam às 14 e ceavam às 17. E por quê? Porque não havia nem luz elétrica! Daí que era preciso aproveitar a luz natural, para todas as tarefas e necessidades.

Ainda no século 19, começo do século 20, as extrações dentárias eram realizadas à sangue frio. E não apenas as extrações dentárias: amputações também. No máximo, você tomava uma bebidinha e rezava para desmaiar bem rápido.

Mulheres morriam de “febre puerperal”, na Europa, porque os médicos nem mesmo lavavam as mãos antes de realizar um parto, mesmo que tivessem acabado de realizar autópsias: era a ignorância acerca da relação entre mãos sujas e a transmissão de doenças.

Os casamentos duravam toda a vida, não por causa de um amor de “almas gêmeas” à la Inês de Castro e Dom Pedro, o Cru, mas porque o casamento era uma “prisão perpétua”. E, principalmente as mulheres, tinham de ir até o fim da vida com aquele parceiro, mesmo debaixo de toda sorte de violências, sofrimento e amargura. Isso quando não terminavam internadas em hospícios, porque os maridos queriam se livrar delas.

Até o século 18, antes das revoluções burguesas, nem se falava em Cidadania, como a entendemos hoje: massiva, com um conjunto de direitos e deveres que se estende à toda a população, e não a apenas alguns. Liberdade de imprensa, de informação, de expressão, nada disso existia. Por qualquer motivo, você podia ser submetido à toda sorte de castigos humilhantes e até à tortura. Podia ser jogado na cadeia e esquecido lá, sem julgamento e sem crime algum.

Da pedofilia e de outras violências contra crianças e adolescentes também nem se ouvia falar, embora elas fossem abusadas por anos a fio. Mas como eram consideradas simples pertences de seus pais, tudo ficava quase sempre entre as quatro paredes do lar.

As ruas das grandes cidades fediam a fezes e urina. As pessoas tinham de andar se desviando não só do excremento de animais, mas também de fezes humanas.

E as pessoas também fediam e tinham um hálito pútrido. Tinham cicatrizes pelo rosto, causadas pela sífilis. E muitas vezes eram obrigadas até a raspar o cabelo, por causa da piolhada.

Comer carne como a gente comia, até antes do Bolsonaro? Mas quando! Na maioria das vezes, era apenas um sopão ou uma babugem de milho ou trigo bolorento, “passeado” de ratos.

E quanto mais a gente recua no tempo, pior fica. Então, imaginem como devia ser a vida no Paleolítico, hoje tão exaltado...

Mesmo assim, os minions suspiram por um retorno ao passado.

Simples ignorância de que o passado é infinitamente mais fedorento, imundo, violento, repleto de fome e de doenças do que este mundo de hoje?

Não. Até porque, se fosse assim, bastaria ofertar-lhes livros de História.

O problema é que os minions não conseguem enxergar o mundo como ele foi ou é.

O mundo deles, passado e presente, é a ficção dos filmes, novelas, séries, jogos, e das correntes de WhatsApp, e das teorias conspiratórias, e de uma memória ultrasseletiva, ou até também calcada no que nunca existiu.

Para nós, o xis do problema é como arrancar esses milhões, bilhões de seres humanos desse universo mítico.

Como já disse várias vezes, essa questão não tem nada a ver com economia, direitos trabalhistas, patriotismo – não em se tratando da massa.

A questão central é de costumes; é moral. E até, como não poderia deixar de ser em se tratando do macaco humano, territorial.

É a incapacidade de se adaptar a um mundo em veloz transformação, que parece se desfazer e refazer em questão de meses, anos, e para o qual não há, aparentemente, um ponto de segurança, a salvaguardar o “seu” território.

É o território “do outro” como permanente “ameaça” às suas regras, convicções, lugar na sociedade, e até à uma conformação (em vários sentidos), que os anos trataram de solidificar.

É o medo de ser e de se movimentar nesse “novo e tenebroso mundo”, pela amplitude de escolhas que proporciona.

É o recurso à religião e à família, como freios derradeiros à aventura (e, também, vontade e responsabilidade) que é a liberdade.

Esse fenômeno atinge países ricos e pobres; homens, mulheres, gays; negros, brancos, amarelos; gente das mais variadas idades, crenças, escolaridade: há desde o analfabeto ou semianalfabeto, até o sujeito com pós-graduação. Por incrível que pareça, há até mesmo cientistas.

E precisamos entendê-lo sob essa ótica subjetiva, para que possamos desenvolver um método e uma linguagem para alcançar essas pessoas.

O problema não são Trump, Bolsonaro e tantos outros: o problema é essa massa que os guindou à liderança, e que sempre buscará líderes semelhantes, se não fizermos alguma coisa, ou se continuarmos a insistir em explicações fáceis e maniqueístas, ou até a ignorá-la.

A questão não é de “nós” contra “eles”: temos é de progredir juntos, e o mundo conosco.

Não há mais espaço para isolamentos, “bolhas”, individualismo: todos dependemos uns dos outros, como bem demonstra essa pandemia. E se não evoluirmos no mesmo compasso, harmonicamente, o que nos espera é a extinção da espécie humana. Seja pela guerra, seja pela destruição ambiental. Seja por algum vírus emergente dessa destruição.

Penso, inclusive, que precisaríamos de uma ampla pesquisa, nos moldes de uma investigação epidemiológica, porque não há dúvidas de que estamos diante de um fenômeno de massas que não reflui, só se intensifica (como vemos agora com essa história de QAnon e, também, com uma exaltação à “masculinidade” que inclui até o incentivo ao rapto e estupro de mulheres, mesmo nos EUA).

É lavagem cerebral? Excesso de exposição a meios audiovisuais? Alguma prática meditativa? Algum agrotóxico?

Parece risível, mas são muitas as hipóteses que precisam ser investigadas, para que a gente consiga entender o porquê de tanta gente diversa, ao mesmo tempo e em vários cantos do Planeta, estar a ser atingida por essa síndrome.

Não estamos em um princípio de milênio, quando os pavores apocalípticos costumam aflorar.

Aquilo que chamamos de fake news também não é um fenômeno recente: notícias falsas e fabricadas em massa serviram desde às revoluções às perseguições inquisitoriais, sem falar nas guerras, nas quais sempre desempenharam um papel estratégico, para confundir os inimigos e elevar a moral das próprias tropas.

Além disso, a velocidade de transformação do mundo assusta a todos, não apenas aos minions: em verdade, todos estamos inseguros e angustiados com o que vem por aí.

Então, por que é que só eles foram aprisionados nessa mitificação?

Muitos deles tiveram experiências semelhantes às nossas.

Muitos são pessoas que conhecemos há anos, e até nossos parentes.

Muitos são afáveis, gentis, solidários, que você até diria incapazes de fazer mal a uma mosca.

Como, então, acabaram capturados nesse universo fantasioso, cuja moral vai se tornando cada vez mais violenta e pervertida, sem que nem isso consigam enxergar?

E o que mais assusta é que estamos diante de um enredamento poderosíssimo.

Ora, uma das forças mais poderosas, em qualquer ser vivo, é o instinto de sobrevivência, só suplantado, em geral, por situações dramáticas, como em caso de preservação da espécie e, principalmente, dos próprios genes.

No entanto, diante dessa pandemia, os minions adotam um comportamento autodestrutivo, quase suicida: não querem se proteger, de jeito nenhum, e recusam até mesmo uma vacina.

Há uns meses, aliás, quando Trump começou a cair nas pesquisas, especulava-se que parte dessa queda se devia à morte de muitos Trumpminions, por covid-19.

Vejam: não estou a falar do Trump e do Bolsonaro, do entorno deles e dos interesses por trás desse genocídio.

Também não estou a falar do cidadão comum, que, levado pela força da autoridade, acaba acreditando naquilo que Trump e Bolsonaro dizem.

Estou a falar dessa massa minion, que, no Brasil, é de cerca de 30% do eleitorado, e que não consegue enxergar que também está a ser conduzida ao matadouro, junto com seus pais, avós, filhos, irmãos, amigos.

É um comportamento tipicamente sectário, mas em proporções como nunca vimos.

É claro que para isso colaboram, de forma extraordinária, as novas tecnologias de comunicação e informação.

Mas nem elas são suficientes para explicar, sozinhas, o porquê de especificamente essas pessoas estarem a ser atingidas dessa forma.

FUUUIIIII!!!!

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