quinta-feira, 30 de setembro de 2021

A visão bolsonarista dos direitos individuais invade os tribunais. E a coletividade que se exploda.

 


(Não deixe de ler a atualização da postagem, ao final) 

 

O desembargador Paulo Rangel, do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, cassou, ontem (29), a parte do decreto da Prefeitura do Rio que obriga a apresentação do certificado de vacinação contra a Covid (o “passaporte da vacina”), para que os moradores da cidade frequentem locais de uso coletivo, voltados ao entretenimento, esporte e lazer, como é o caso de cinemas, teatros, museus, estádios e academias de ginástica.

O decreto objetiva conter o avanço da pandemia, em uma cidade onde se alastra uma das variantes mais perigosas do coronavírus (a Delta). A medida também pretende impulsionar o retorno à normalidade de várias atividades econômicas, que geram empregos e impostos em benefício da coletividade. Mas o meritíssimo entendeu que um decreto municipal não pode impedir a “liberdade de locomoção” das pessoas que não se vacinaram.

É um entendimento oposto ao da desembargadora Teresa de Andrade Castro Neves, do mesmo tribunal. Para ela, a exigência do “passaporte” não viola o direito à livre locomoção de quem quer que seja, até porque não atinge estabelecimentos essenciais, como os supermercados.

Além disso, como ela bem lembrou, o Supremo Tribunal Federal (STF) já decidiu que a União, os estados e os municípios podem, sim, adotar medidas legislativas e administrativas, para deter o avanço da Covid. E já decidiu, também, que, embora não possam forçar ninguém a se vacinar, a União e os Estados e municípios podem tornar a vacinação compulsória, através de “medidas indiretas”, como é o caso da frequência a determinados locais.

No último dia 13, a desembargadora negou a liminar pedida por uma mulher, que alegou que o decreto violava o seu direito constitucional “à livre circulação e locomoção”. Além disso, estaria lhe impondo a “obrigação” de se vacinar, apesar de se encontrar em um “processo de investigação alérgica”, durante o qual a recomendação médica seria para que não se vacinasse.

Mas, ao contrário do desembargador Paulo Rangel, a desembargadora Teresa de Andrade Castro Neves decidiu contemplar não apenas os direitos individuais.

Ela destacou a importância da vacinação em massa e das medidas sanitárias no combate à pandemia.   

E observou que o decreto busca garantir a “integridade da população”, impedir a disseminação do vírus e estimular a vacinação.

Daí a necessidade de “compatibilizar” o direito individual de livre locomoção com o direito à Saúde, igualmente garantido pela Constituição.

Segundo ela, é preciso harmonizar tais direitos, “fazendo com que um ceda em determinada medida em face do outro, no caso concreto, dada a sua relevância pontual e ocasional. Para tanto, deve-se lançar mão dos postulados da razoabilidade e proporcionalidade a fim de realizar um juízo de ponderação entre os direitos envolvidos”.

A seu ver, “a parcial limitação do direito individual de locomoção de um cidadão ou de determinada parcela destes que não pretendam se vacinar inequivocamente é menos gravosa que os inúmeros benefícios sociais e comunitários da população no ideal de se ver livre da pandemia. O sacrifício parcial do direito individual mostra-se, no caso, mais relevante e benéfico que o atraso na retomada da estabilidade social e integridade da população”.

O “passaporte”, disse ela, é uma medida transitória, que só atinge algumas áreas de lazer e um “incômodo menor” diante do direito à Saúde e à Vida. É “uma restrição com importante objetivo supraindividual e comunitário (...)”.

(Leia a íntegra da decisão: https://www.conjur.com.br/2021-set-13/exigencia-passaporte-vacina-rj-nao-viola-direito-livre-locomocao )

Já o desembargador Paulo Rangel não teve essa sensatez e quase que cunhou uma Constituição para chamar de sua, embalado por um Brecht que deve estar se revirando no túmulo.

Além de ignorar as decisões do STF e de repisar a suposta ilegalidade de tais restrições via decreto, fez uma ardente defesa dos direitos individuais, que parece considerar infinitamente superiores aos direitos coletivos, mesmo diante de uma pandemia que já matou quase 600 mil brasileiros, e deixou milhares com graves problemas de Saúde.    

Para ele, o decreto “divide a sociedade” entre vacinados e não-vacinados: “O Prefeito está dizendo quem vai andar ou não pelas ruas: somente os vacinados. E os não vacinados? Estes não podem circular pela cidade. Estão com sua liberdade de locomoção cerceada. Estão marcados, rotulados, presos em suas residências. E por mais incrível que pareça tudo isso através de um decreto”.

Ele chega a comparar a carteira de vacinação, “que separa a sociedade”, com a marcação a ferro dos antigos escravos e do gado. Diz que o documento “é um ato que estigmatiza as pessoas criando uma marca depreciativa e impedindo-as de circularem pelas ruas livremente, com nítido objetivo de controle social (...)”.

“É uma ditadura sanitária”, proclamou. “O Decreto quer controlar as pessoas e dizer, tiranicamente, quem anda e não anda pelas ruas da cidade”.

As estranhas comparações vão ainda mais longe, quando ele recorda a inferiorização social de mulheres, negros e judeus, tratados até como “perigosos” e “nocivos”, através do medo incutido nas pessoas, em vários períodos históricos.

“Outro que sabia bem incutir no povo o medo dos inimigos foi HITLER, que através da propaganda nazista, incutiu na população o medo dos judeus e dos ciganos. Era preciso aniquilá-los para se defender”, afirmou.

E acredita que o “próximo passo no Brasil é insuflar os vacinados a denunciar e reagir contra os não vacinados acusando-os de serem vetores de transmissão do vírus (...)”.

O meritíssimo faz, sim, um belo discurso.

Critica a tortura e todas as formas de manipulação social que desembocaram na caça às bruxas e nas perseguições a negros e judeus, vistos, em várias épocas, como inimigos da coletividade.

Tudo para concluir que o “o novo inimigo” são os não-vacinados. “Querem obrigar as pessoas a se vacinar e em nome dessa bondade cerceiam liberdades públicas, prendem pessoas nas ruas, nas praças, fecham praias, estabelecem lockdown”.

Lindo!!!! Perfeito!!!!... Não fosse por um “detalhe”: não são apenas os não-vacinados que possuem direitos.

Os filhos que perderam os seus pais, os pais que perderam os seus filhos, TODOS possuíam e possuem direitos.

O direito à Saúde, o direito à Vida, muito, mas muito superiores ao suposto “direito” de algum egoísta, de algum irresponsável, perambular em tudo que é lugar, disseminando essa doença.

Ou será que o meritíssimo acredita que os sujeitos condenados pela Justiça, por transmitirem o HIV a várias mulheres, estavam apenas exercendo o seu “direito”?

Ou será que o sujeito que enche a cara, pega num volante e mata uma pessoa estava apenas exercendo a sua “liberdade”?

Aliás, por esse raciocínio, nenhum ladrão ou homicida deveria ser condenado: afinal, estamos diante do “direito” daquele ladrão ou homicida de exercer a sua “liberdade” de roubar ou matar...

O meritíssimo chega a afirmar que “cidadãos cumpridores dos seus deveres” estão sendo impedidos, por decreto, de andarem livremente pelas ruas.

Mas critica a “hipocrisia” de tal medida, já que os transportes públicos permanecem lotados, o que é uma contradição com o suposto “aprisionamento” dos não-vacinados.

Além disso, que “cidadãos cumpridores de seus deveres” são esses, que expõem os demais à doença e à morte?

E vítimas? Eles?

Vítima é a mãe que perdeu seu filho.

Vítima é o bebezinho que vai crescer sem a sua mãe, que morreu ao dar à luz.

Vítima é o pai ou a mãe de família que já não pode mais nem trabalhar, por causa das sequelas que essa doença deixou.

Vítimas são as pessoas que viram um ente querido sufocar até à morte, como aconteceu em Manaus.

Vítimas são as milhares de famílias que não puderam nem mesmo segurar nas mãos da pessoa a quem tanto amavam enquanto ela morria, e que não puderam nem mesmo lhe dar um enterro digno.

Vítimas são os 600 mil brasileiros, os 600 mil seres humanos que ainda poderiam estar entre nós, que ainda poderiam estar a espalhar toda a luz, toda a alegria que sempre espalharam, mas que agora jazem em nossos cemitérios.

Não, esses irresponsáveis não são vítimas: eles são é criminosos, que, se escaparem da Justiça dos homens, certamente que não escaparão da Justiça de Deus.

Muitos deles se recusam a usar uma simples máscara, porque os “incomoda”, como se a vida dos outros não valesse nem mesmo a porcaria de uma máscara.

Muitos se recusam a se vacinar, mesmo diante das variantes que estão surgindo, e ainda querem entrar em restaurantes, academias, ginásios, ambientes fechados.

Desde quando alguém que se vacinou, que cumpriu o seu dever em relação à coletividade, tem de ser obrigado a suportar a presença, em um restaurante, de um sujeito que resolveu não se vacinar?

E o nosso direito como é que fica?

E o direito do garçom, do cozinheiro, da recepcionista?

Acaso só quem tem direitos são os bolsonaristas?

Ao contrário do que também diz esse meritíssimo, o que levou ao fechamento de várias empresas não foram as medidas sanitárias contra a Covid, mas as ações e omissões desse psicopata genocida que é o Bolsonaro.

Se ele tivesse ajudado financeiramente as pequenas empresas e dado um bom auxílio para as pessoas ficarem em casa; se ele tivesse comprado vacinas ainda no ano passado, provavelmente a economia brasileira já estaria voltando ao normal, como está acontecendo em vários países.

Mas Bolsonaro, esse nazista, queria era que as pessoas morressem, principalmente, os idosos, os doentes e os pobres.

E se tantos brasileiros (esses sim, cidadãos cumpridores de seus deveres) não tivessem se trancado em casa, é bem provável que hoje tivéssemos o dobro ou o triplo de mortes.   

A Prefeitura do Rio de Janeiro já anunciou que vai recorrer da decisão desse desembargador.

Mas a sentença dele, certamente, ajudará historiadores, antropólogos e psiquiatras a compreenderem, no futuro, as distorções do pensamento bolsonarista, para o qual a “liberdade” é o “direito” de fazer mal aos outros, é o "direito" de cometer toda a sorte de crimes, e até de matar.

Leia a íntegra da sentença do meritíssimo: https://www.conjur.com.br/2021-set-29/desembargador-concede-hc-coletivo-passaporte-sanitario-rio

E leia também a postagem “A ‘liberdade’ bolsonarista é a liberdade do crime”: https://pererecadavizinha.blogspot.com/2021/09/a-liberdade-bolsonarista-e-liberdade-do.html

 

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Atualização em 30/09/2021, à noite:

Na tarde de hoje, o ministro Luiz Fux, presidente do STF, concedeu liminar para restabelecer a “plena eficácia” do decreto da Prefeitura do Rio de Janeiro que criou o “passaporte da vacina”.

A decisão foi em outro processo, no qual os clubes Militar e Naval haviam obtido liminar, no Tribunal de Justiça estadual, para que os seus associados não precisassem apresentar o comprovante de vacinação.

Mas a decisão de Fux também teria derrubado a liminar do desembargador Paulo Rangel, que cassou parcialmente o decreto, justamente quanto à exigência do “passaporte”, para os não-vacinados em geral.

(O “teria” usado acima é porque tenho dúvidas, embora me pareça que sim. O problema é que noticiário dos veículos de comunicação está bastante confuso, já que vários parecem não ter percebido que a decisão de Fux foi em outro processo).

O argumento repisado por Rangel, contra o “passaporte”, foi o da impossibilidade legal de um decreto restringir o “direito à locomoção”.

Já o principal argumento dos clubes foi o de que o decreto violaria o princípio da isonomia, uma vez que deixou de fora outros locais com “grande potencial de gerar aglomerações”, como é o caso de restaurantes, supermercados, escolas e hospitais.

Na decisão, Fux reafirmou a competência também dos municípios para estabelecer normas sanitárias contra o avanço da Covid, como fixou o Plenário do STF.

 E disse que o “passaporte de vacinação” se insere entre as medidas que os municípios podem adotar no combate à pandemia, conforme os exemplos existentes no artigo 3º da Lei Federal 13.979/2020.

Além disso, reconheceu o “potencial risco de violação à ordem público-administrativa”, com a dispensa do “passaporte” nos clubes Militar e Naval, “dados seu potencial efeito multiplicador e a real possibilidade de que venha a desestruturar o planejamento adotado pelas autoridades municipais como forma de fazer frente à pandemia em seu território, contribuindo para a disseminação do vírus e retardando a imunização coletiva pelo desestímulo à vacinação”.

Leia a matéria do jornal O Globo: https://oglobo.globo.com/rio/stf-restabelece-passaporte-da-vacina-no-rio-25219533

E no Conjur, a íntegra da decisão de Fux: https://www.conjur.com.br/2021-set-30/fux-suspende-liminar-restabelece-passaporte-vacina-rio

Ainda no Conjur, você também pode ler um interessante artigo de Lenio Streck sobre a rumorosa decisão do desembargador Paulo Rangel: https://www.conjur.com.br/2021-set-30/lenio-streck-algoritmo-nao-proibiria-passaporte-vacina?utm_source=dlvr.it&utm_medium=facebook

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