domingo, 22 de abril de 2007


Mulheres



Capítulo I


Levanta, mija, bebe água. Conta carneirinhos; 1, 2, 3, 4, 5 ...Olha o relógio - 6 da manhã. Mais um dia, mais cansaço (de quê?...).
Abre uma carteira de cigarros – a terceira da noite. Levanta, espia à janela. Silêncio... Uma sombra caminha pelas ruas... cheiro de café... (será que o boteco já abriu?...). Desce a escada.
O boteco está cheio. Senta ao balcão, pede uma cerveja, duas, três. Um homem engole um café. Não sente o cheiro, nem o gosto. Apenas o engole (por vezes, esqueço de ter-me olhado ao espelho e acredito na própria inexistência. Mas inexistir já é condição. Assim como o nada...).
Ganha a rua em passos trôpegos (qual a sensação do não ser?...). Uma mulher esquiva-se dos carros, um filho agarrado aos braços. Um homem arruma, na calçada, pinturas de santos. Um menino sujo e faminto morde um pedaço de pão.
No monumento da praça, o beato nu grita e gargalha:
_Multiplicai-vos, multiplicai-vos, porque é só o que vos resta. Vossos filhos herdarão a terra, a esterilidade da terra, até que se apague o último cigarro!...
Dez horas. O sol expulsa a neblina. Cai na sarjeta (me sucedo a cada dia, no rearranjo de minhas células. Por que tenho a sensação de que não passo de um feto morto?...)
Levanta, retorna ao quarto. Deita novamente. Tic-tac-tic-tac-tic-tac-tic-tac-tic-tac-tic-tac (os dias não serão meras palavras...) Tic-tac-tic-tac-tic-tac-tic-tac-tic-tac-tic-tac (foi só ontem que percebi essas sombras em teu rosto. Ontem, quando tuas mãos passeavam em minhas coxas e o teu hálito era mais quente que de costume...) Tic-tac-tic-tac-tic-tac-tic-tac-tic-tac-tic-tac (matei-te a golpes de canivete, cortei-te a língua e fiquei a mastigá-la lentamente. E o teu sabor é de bicho no cio...) Tic-tac-tic-tac-tic-tac-tic-tac-tic-tac-tic-tac (vi uma barata num canto, quieta, parada, fugindo da morte. Se tivesse deuses, teria rezado...) Tic-tac-tic-tac-tic-tac-tic-tac-tic-tac-tic-tac (a vida não é começo, nem fim. A vida é um beco...) Tic-tac-tic-tac-tic-tac-tic-tac-tic-tac-tic-tac (o fim é um estalar de dedos...) Tic-tac-tic-tac-tic-tac-tic-tac-tic-tac-tic-tac (uma navalha que rebrilha na noite...) Tac.
_Mariana...Mariana!
_O quê?
_Tá cheirando a queimado!
_O feijão!!!...
Tira a tampa, mete a colher, troca de panela, coloca mais água.
_Parece que se puser uma cebola com casca tira o cheiro... sei lá!...
_Que diabo ta acontecendo contigo? Em que estavas pensando?
_Em nada, Fernando...Só me distraí...É que não dormi direito...
_De novo?!!! Por que não procuras um médico? Eu já te disse que isso não é normal!...Ninguém pode passar noites e noites sem dormir, Mariana!...O que é que ta havendo contigo?
_Não é nada, eu já não disse? Eu só ando meio preocupada com as meninas. A Lucinha e essa adolescência horrível, que nunca mais que acaba...A Luísa, que não estuda...E tem, também, o trabalho, que anda pesado...Tô cansada, estressada, é só!...
_É...Se te fechas em copas, o que é que eu posso fazer?...
_Eu não to me fechando em copas, porra nenhuma! Tu é que tens essa mania irritante de ficar fazendo tempestade em copo d’agua! Se não durmo, é porque to doente...Se sonho, é porque tô ficando doida...De vez em quando, Fernando, só de vez em quando, será que não podias viver tua própria vida e deixar a minha vida em paz?
_É engraçado!...Às vezes, eu tenho a sensação de que pensas que eu sou burro!...Não existe a tua vida ou a minha vida, nem três, nem quatro!... O que existe, Mariana, é a nossa vida, a nossa!... Que tu estás fazendo o favor de jogar fora, com essa tua mania de te fechares em ti mesma!...Por que não te abres comigo? Por que não me dizes o que estavas pensando? Como é que eu posso te entender, se não falas comigo?
_(Até parece que ele entenderia! Ou que, ao menos, faria o mínimo esforço para entender!...)
_Eu preciso ir embora...Já tô atrasado...Quando eu voltar, à noite, a gente conversa...
_Se voltares, não é? Se não arranjares outra lambaia pra dormir!...
_Eu nunca mais fiz isso, Mariana!...
_Nunca mais!...Que grande consolo, não é mesmo? Como se pudesses ter feito!...
_Eu já te disse uma vez: a tua agressividade, não me atinge mais! Doía no começo, há muitos anos, te lembras? Agora, já não faz a mínima diferença!...Simplesmente, não me atinge!...
_Ok, Batfino: as tuas balas não me atingem, porque as minhas asas são duas couraças de aço!...ah, ah, ah!...
_Definitivamente, eu não tenho tempo pra isso!...Fica aí com o teu ódio e a tua frustração!...Ah, e não precisas botar nenhuma cebola nessa porcaria!...Tô sem tempo, meu amor! Não venho almoçar!... Fui!



Capítulo II




Em 1.920, Anajás era um vilarejo perdido na imensidão do Marajó. Possuía menos de mil habitantes e uma rua principal, que começava e acabava no rio. Em uma das margens era, também, o rio. Na outra, um amontoado de cabanas de barro socado, cobertas de palha.
O clima, quente e úmido, favorecia a proliferação de insetos, que disputavam, com esquálidos seres humanos, cada palmo de território.
Mês a mês, aportava o regatão, cheio de quinquilharias: tecidos e perfumes baratos, carne salgada, pão bolorento. O pagamento era em mercadorias – bolotas de seringa, madeira, peles de animais silvestres - revendidas pelos olhos da cara, em Manaus e Belém.
À época, era preciso uma boa dose de coragem para vencer a incerteza daqueles rios, que mais pareciam mar; os milhares de sons da floresta, dominada por anhangás; as estranhas febres que surgiam de repente e que matavam mais depressa ainda.
E foi por tanta desolação que causou espanto, quando, em 03 de fevereiro daquele ano de Nosso Senhor, os anajaenses viram desembarcar aquele homem alto, louro, de claríssimos olhos azuis. As malas e a sacaria anunciavam que viera para ficar. Os modos educados e o português repleto de palavras incompreensíveis lhe valeram o apelido de “dotô”.
Waldomiro Brunswick tinha, então, 27 anos a esquecer. O pai, um ex-padre holandês migrado para o Maranhão, morrera, meses antes, à mesa de um boteco de São Luís, após consumir litro e meio de cachaça. Em 35 anos de exílio forçado, casara com uma maranhense, fizera seis filhos, comprara milhares de hectares, dezena de armarinhos, mas nunca conseguira habituar-se àquela terra selvagem, tão distante da sua Amsterdã.
Dia após dia, legara aos filhos, além de polpuda herança, uma história de dor: socos, tapas, surras de cinto, de corda, de cipó; a lembrança dos gritos desesperados da mãe, que vinham do quarto ao lado.
Com o corpo moído pelas constantes sovas, as noites mal dormidas e o trabalho de sol a sol no roçado, só a muito custo Waldomiro concluíra o Colegial. Ficou-lhe a frustração de não fazer faculdade; de não conseguir tornar-se, de fato, um doutor. Lia tudo o que lhe caía nas mãos – jornais, revistas, romances, História, Filosofia. Amava, sobretudo, Platão. E acreditava, piamente, que o conhecimento conduz ao caminho do bem...


Capítulo III


_ Bastiana, ô Bastiana! (Ô minina danada, meu Deus! Pareci inté que tem u bichu nu côrpu!). Bastianaaaa!
A mãe olha ao redor e nada da garota. O rosto vermelho de raiva, enche os pulmões:
_ Diabu! Cão do infernu! Ti apegu pêlus cabelus i ti deixu ruxinha, ruxinha...
A menina sai da mata em disparada. O rosto moreno coberto de suor.
_ A sinhora chamô?
_ Ondi é qui ti ametesti, praga du infernu?
_Tava fazendu necessidadi...
_ Tu tá pensandu qui su truxa? Tu ti assumisti desdi u aumuçu. Tu tava era ti arrebulandu com aquelis mulequis du sir Zé. Uuulha qui si ti apegu prênha...
A menina ergueu o queixo.
_ Si a sinhôra quizé, lhi alevu inté lá, pra modu di vê u cocô..
O tapa zuniu. Sebastiana balançou a cabeça meio zonza.
_ Ti alevanta mais é e vai inté a mêrciaria du sir Zé e mi traiz uma saca di feijãu.
Sebastiana pôs-se a andar por uma picada, sem olhar para a mãe. Não queria que lhe visse as lágrimas, nem a revolta estampada nos olhos. (Pur tudu i pur nada mi assenta a mão na cara. Mi bati qui nem cachôrru!...).
Havia vezes que sentia pela mãe um ódio crescente, semelhante às pancadas que levava, dia após dia, semana após semana. Queria partir daquela mãe (rúim quinem bichu!...) e daquele fim de mundo. Queria conhecer a Belém de que tanto ouvira falar, pelos filhos de seu Zé e os donos dos regatões.
Sebastiana, morena forte e bela, os homens enchiam de presentes. Os donos dos regatões davam-lhe tecidos, perfumes; os filhos de seu Zé roubavam carne seca, para agradá-la.
Por mais simples e soltos que fossem os vestidos, não conseguiam esconder o fulgor daqueles 15 anos; aquele corpo carnudo, em cujas proporções a natureza se pusera a cismar...
Indiazinha braba! Brigava com os moleques de igual para igual, chamando-lhes toda a sorte de nomes e assentando-lhes pontapés. A força parecia fluir do fundo da alma. Também atirava melhor que a maioria dos homens, que, por isso, lhe guardavam respeito.
Respeito, também, lhe guardava o pai que, havia dois anos, tentara estuprá-la. Sebastiana acordou com o peso daquele homem enorme, com cheiro forte a cachaça. Assentou-lhe uma joelhada entre as pernas, correu para a cozinha, pegou num facão e disse, a voz pausada:
_ Si u sinhô dé mais um passu lhi arrancu as tripa di fora. Lhi arretalhu tudinhu, tudinhu feitu um pôrcu.


Capítulo IV


_ Sir Zé!
_ O que queres, ó miúda?
_ A mãi mandô pidi uma saca di feijãu.
_ Ô raios! Mas isto assim não pode ser! Pois, já lá vão dois meses que a senhora sua mãe prometeu pagar-me e ainda não lhe vi um tostão! Isto assim está muito mal, muito mal! Pois diga a senhora dona Benigna que ou paga-me o que deve ou daqui não verá nem mais dedal de mel coado.
_ U senhô divia era dizê mas issu pra ela, purque eu num tenhu nada qui vê cum isso. Mas pareci inté qui u sinhô tem medu dela...
_ Ô miúda, bem se vê que és mesmo muito atrevida! Pois, onde é que já se viu falar-me desse jeito? Pois, só estou a dizer que isto cá anda muito mal! Tenho pela senhora sua mãe a maior das considerações, mas isso assim não pode ser! Pois, a mim, quem é que me fia? Quem é que há de dar-me um bocado de pão? Não estou cá para arreliar-me desse jeito! Qualquer dia, vou-me mais é para Lisboa.... Mas onde é que já se viu? Por acaso fiz algum mal a Deus?
_ Ulha, sir Zé, si u sinhô num quisé fiá, tudu bem. Mas dispuis quem vai vim aqui é a mãi, qui anda reivosa, reivosa puru sinhô andá fiandu cachaça pru papai. Aí ela vai lhi dizê tuda sorti di disaforu, qui nem da última veiz....
_ Pois estás é muito enganada, ó rapariga, se pensas que tenho medo a senhora dona Benigna. Só não lhe dei uns tapas bem assentes, naquele dia, porque lá não sou homem de bater em mulher! Anda! Vê se te avias, mais é! Tens ali atrás o feijão! Leva o que quiseres! Tanto se me dá, pois isto cá anda muito mal, muito mal!
Sebastiana correu até os fundos da casa e estava quase acabando de encher um saco grande de sarrapilheira, quando, ao olhar através da porta, deu com aquele homem em frente ao balcão (diabu! Qui pareci inté Jesus Cristu!).
Um turbilhão de sensações esquisitas tomou-lhe o peito: medo, angústia, desassossego, uma espécie de torpor. Imaginou-se a remar no meio de um grande rio, o azul do céu faiscando nos olhos de Waldomiro, que, agora, também olhava para ela e, lentamente, ia se aproximando.
_ A senhorita precisa de ajuda?
_Num careci não...
_Mas a saca é muito pesada! Se quiser, ajudo a levar.
_Já dissi qui num careci! Possu inté parecê piquena, mais si duvidá, moçu, aguento inté mas pesu qui u sinhô...
Apanhou a saca, que devia ter uns 20 quilos, e colocou-a nas costas. Waldomiro ficou a olhar aquele corpo miúdo, vergado pela saca imensa, a sumir no horizonte. E a deixar para trás um cheiro forte a patchouli...

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