segunda-feira, 14 de fevereiro de 2022

Em busca de votos, esquerdas querem “esconder” pautas “identitárias”. Mas como podem “esconder”, ou até “negociar”, aquilo que não lhes pertence?



 

As crescentes críticas às chamadas pautas “identitárias” têm-me deixado angustiada.

É que fico pensando: será que nós, brasileiras, seremos obrigadas a usar uma “burca pentecostal”?

Será que nossos maridos, pais ou irmãos poderão, novamente, nos trancafiar em hospícios, para nos “amansar”?

Quando os negros voltarão a ser açoitados impunemente, e proibidos de frequentar os “espaços sagrados dos brancos”?

Os gays poderão ser apedrejados pelas ruas? Ou serão jogados em prisões e hospícios, até que se “curem” de sua “doença”?

Os debates em torno dessas pautas que, em tese, dizem respeito apenas a determinados grupos sociais, não são novos.

Há cerca de 40 anos, lembro de certo partido de esquerda a dizer que não devíamos gastar energia com essas lutas, mas focar na luta geral dos trabalhadores, porque, “quando vier a revolução”, ela contemplará tais questões.

Donde se conclui que nós, mulheres, negros e gays, devemos é suportar calados todas as humilhações e violências cotidianas, até que cheguemos a esse fabuloso tempo redentor...

Afinal, quem somos nós para, talvez, até “prejudicar” essa “magia revolucionária”, com as suas asas de morcego, bocas de sapo e rabos de cobra?

Sim, porque, “quando vier a revolução”, bastará gritarmos abracadabra, diante desse caldeirão fumegante, e todos os seres humanos estaremos livres não apenas da opressão capitalista, mas, também, de todo o machismo, de todo o racismo, de toda a homofobia, e até mesmo dessa nossa essência predatória...

Hoje, de forma covarde e oportunista, setores das esquerdas tentam transformar esse equívoco em posição majoritária, a fim de conquistar mais votos nestas eleições.

Querem “esconder” as nossas pautas, cuja classificação como meramente “identitárias” já traz um preconceito: é como se dissessem respeito apenas a grupelhos; é como se fossem bijuterias, insignificâncias, em vez de necessidades urgentes, que dizem respeito até à sobrevivência mesma de grande número de cidadãos.

Então, em primeiro lugar, cabe esclarecer: não, não somos uma banda de rock revoltada, uma comunidade hippie e nem cabemos em uma kombi.

Em verdade, nós, mulheres, negros e gays, somos a maioria da sociedade brasileira.

E isso significa que as nossas pautas têm, sim, grande peso, grande importância, grandes impactos na coletividade, no presente e no futuro.

Em segundo lugar, o que é que tais setores pretendem “esconder”, ou quem sabe até “negociar”, para a obtenção de votos junto aos nazifascistas, “evangélicos” e “liberais na economia, mas conservadores nos costumes”?

O casamento gay e a adoção de crianças por esses casais? A possibilidade de aborto por meninas e mulheres vítimas de estupro? A criminalização do racismo e as cotas raciais?

E como tais setores pretendem “esconder”, ou até “negociar”, aquilo que não lhes pertence?

Os direitos que possuímos não nos foram “concedidos” por partidos ou espectros políticos: eles foram é arrancados de sociedades machistas, racistas, homofóbicas, e até patriarcais, em uma luta milenar.

E se hoje tenho direito de ler, estudar, votar, ser independente e expressar a minha opinião, é porque milhões e milhões de mulheres, que vieram antes de mim, lutaram contra o patriarcado e contra o machismo, mesmo sofrendo todo tipo de violências.

Muitas tiveram uma morte horrível: foram emparedadas, apedrejadas, torturadas, queimadas vivas em praça pública, algumas vezes depois de terem os seios arrancados...

Uma história de sangue e de resistência, também vivida por negros e gays.

Então, como poderemos silenciar, ou até mesmo recuar um passo que seja, diante dessas hordas?

Acaso esses setores de esquerda ignoram que o desejo dessas massas reacionárias é o retorno ao patriarcado?

Além disso, como, em pleno Século 21, tantos intelectuais de esquerda ainda se deixam enfeitiçar por esse mito de um “mundo perfeito”?

Como podem acreditar em uma sociedade melhor que surgirá “magicamente”, sem o combate corajoso contra preconceitos milenares, no aqui e no agora?

Para justificar essa posição vergonhosa, esses setores chegam a culpar a “insistência” em nossas pautas pela ascensão do nazifascismo no Brasil.

É a mesma indignidade daqueles que culpam a vítima por gritar e lutar por justiça, em vez de se calar.

É, também, a busca de um bode expiatório para os seus erros e incompetências.

É fato que o foco escolhido para manipular essas massas nazifascistas e patriarcais são os costumes: a reapropriação de seus corpos, por mulheres e gays, e a “violação de espaços dos brancos”, pelos negros.

Mas também é fato que foram muitos os erros das esquerdas.

Ao longo de anos, elas não perceberam a aglutinação, manipulação e tamanho das massas reacionárias.

Ingenuamente, consideraram avanços sociais, econômicos e culturais como ganhos consolidados. E que as estradas continuariam a se abrir infinitamente, sem qualquer reação, apesar da história do Brasil e dos interesses internacionais neste país.

Também foram incapazes de perceber o grau de periculosidade das fake news, apesar de usadas há décadas para enlamear as esquerdas; apesar de tentarem minar a credibilidade do sistema eleitoral desde pelo menos 2010 ou 2011; apesar de terem até ganhado um status “profissional”, digamos assim, nas eleições de Donald Trump, em 2016.

Aliás, até mesmo nas últimas eleições, em 2020, quatro anos depois de Trump e dois anos depois do que se viu nas eleições de 2018, as redes de fake news seguiram provocando enormes estragos, sem que as esquerdas conseguissem responder à altura.

E, nas eleições deste ano, parecem novamente desatentas ao arsenal que deverá ser usado pela extrema direita, como técnicas de manipulação de vídeos que tornam praticamente impossível diferenciá-los de vídeos verdadeiros.

Outro enorme erro é que as esquerdas não conseguiram nem mesmo conceber um sistema eficaz de comunicação popular, ao longo dos 12 anos em que estiveram no poder.

Tivessem atentado à importância estratégica da comunicação, teriam construído um sistema de produção centralizada de informações, mas capaz de alcançar sindicatos, associações, bairros e ruas ao mesmo tempo, em boa parte do país.

Como não o fizeram, acabaram na defensiva, frente aos ataques diários dos grandes veículos de comunicação.

Assim, aprisionadas no canto do ringue, levando soco atrás de soco, era apenas questão de tempo para que viessem a cair.

Também ignoraram (ou até ajudaram) a expansão de pastores obscurantistas, vigaristas, talvez até envolvidos em lavagem de dinheiro do crime organizado, apesar das denúncias, ao longo de anos, acerca do projeto de poder desses sujeitos.

Habituaram-se, ou se “conformaram”, ao jogo político do “é dando que se recebe”, e fecharam os olhos à urgência de melhorar a composição do Parlamento.

Afastaram-se das massas populares e se burocratizaram: como se pudessem se manter no poder apenas através do aparelhamento do Estado e do “toma-lá-dá-cá”; como se o seu verdadeiro sustentáculo não fosse a organização e politização dos trabalhadores.

Esses e muitos outros erros desembocaram no desastre de 2013, quando acabaram perdendo o controle das ruas para os nazifascistas.

Daí ao golpe de 2016 foi apenas um passo.

Daí ao golpe de 2018, apenas outro.          

Então, onde as chamadas pautas “identitárias”, como as “grandes responsáveis” pela ascensão do nazifascismo?

Se as esquerdas preferiram se burocratizar, “dar e receber” e se afastar das massas, em vez de investirem em comunicação popular e educação política, onde nós, negros, mulheres e gays, em tudo isso?

Tivessem mantido a alma à esquerda, nem mesmo os bois de piranha seríamos hoje, daqueles que manipulam tais criaturas.

Porque o verdadeiro xis do problema estaria claro à toda a população: os interesses internacionais no Brasil e as fissuras que as esquerdas conseguiram abrir, nesse sistema escravocrata da sociedade brasileira.

Ao longo de milênios, nós, mulheres, gays e negros, atravessamos sistemas econômicos, sociedades, governos, até chegarmos a este ponto da História.

Escapamos às cozinhas, senzalas, armários, troncos, fogueiras, manicômios, prisões.

Marchamos rumo às escolas, associações e mercado de trabalho.

Mas, ainda hoje, muitas mulheres deste país lutam para tirar os olhos do chão, sem levarem um tapa na cara.

Todos os dias, nós, mulheres, negros e gays, sofremos toda sorte de preconceitos e violências: nas ruas, nas escolas, no trabalho, nos transportes, shoppings centers, e até mesmo em nossos lares.

Somos humilhados, espancados, torturados, assassinados.

A violência esmaga nossas vidas e nossos corpos. E mata, até mesmo os nossos filhos.

Em pleno século 21, neste país-continente e na maior parte do mundo, ainda lutamos por dignidade, por respeito aos nossos direitos de seres humanos e cidadãos.

E não, não vamos nos deixar intimidar pelas investidas dessas massas reacionárias, que tentam nos fazer retroceder não um ano, não um século, mas milênios, para nos reconduzir à condição de “coisas”, de bichos, sem alma, sem rosto, sem vontade, sem voz.

Que a direita liberal aceite, quem sabe, manter distância das nossas pautas, para obter apoios de nazifascistas, “evangélicos” e “liberais na economia, mas conservadores nos costumes”, é coisa que não me surpreenderá.

Afinal, a transformação de seres humanos em meras “coisas” produtoras de riquezas, para apropriação por uns poucos, é o cerne de todos os sistemas econômicos até aqui, incluindo o capitalismo.

Mas que gente de “esquerda” ao menos imagine agir da mesma forma, não apenas surpreende: envergonha.

Porque não é isso o que se espera de quem diz pretender uma sociedade sem opressores e oprimidos, ou ao menos muito mais justa.

Se tal se concretizar, será um lastimável erro.

Político, humanitário e histórico.

Que reduzirá as esquerdas brasileiras, quem sabe, à simples disputa do poder pelo poder.

FUUUUIIIIII!!!!!!

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