domingo, 17 de fevereiro de 2019

A República do Bundão






Conta um manuscrito do Rio Amazonas que, no ano de 2.518 de Nosso Senhor, o Brasil resolveu mudar de nome e passou a se chamar República do Bundão.

A decisão foi precedida de acalorados debates entre os bundões, o novo gentílico daquela pitoresca nação.

Mas não pense o leitor que tal se deveu a alguma comparação maledicente.

Em verdade, o gentílico que antecedeu a República apenas traduziu uma condição literal: um belo dia, todos os habitantes daquele país acordaram transformados em um bando de bundões.

Por algum fenômeno genético ou vingança divina, perderam todo o resto do corpo, que foi sintetizado em enormes bundas.

O fato atraiu cientistas do mundo inteiro, que se dispuseram a estudar, “de grátis”, o intrigante fenômeno: é que também havia a preocupação de que fosse contagioso e acabasse provocando uma “bundástica” planetária.

O que mais impressionava os cientistas era que os bundões continuavam a viver normalmente, embora com as necessárias adaptações: se locomoviam aos pulos; pensavam, falavam e excretavam pelo mesmíssimo tubo intestinal.

Tais adaptações, é claro, trouxeram alguns inconvenientes.

Lideranças políticas e religiosas passaram a “agraciar” a plateia com frequentes banhos de merda, esguichos tão aguados e fedorentos que mais pareciam saídos das profundezas infernais.

No entanto – e isso também intrigava os cientistas – quanto mais pútrida e caudalosa a merda, mais os bundões admiravam o orador.

Extasiados, saltavam de um lado a outro, em coreografias tribais e peidorreiras, a clamar por mais e mais fezes.

E depois de certo tempo, já habituados à coprofagia, até elegeram presidente o mais “prolífico” de todos eles.

O bundão-presidente não perdeu tempo em presenteá-los com merdas da melhor qualidade: todos perderam seus direitos trabalhistas; agora, feito escravos, teriam de trabalhar de sol a sol, nos 400 dias do ano, e com salários que não pagavam nem mesmo um pum. E quando envelhecessem, teriam de mendigar pelas ruas.

O país retrocedeu 500 anos em 5, tornando-se um imenso laboratório para todas as forças intestinais do universo.

E no entanto, os bundões pareciam felicíssimos com tudo aquilo, tanto que os cientistas começaram a especular se a nova condição glútea não lhes havia prejudicado o funcionamento cerebral.

A única coisa que realmente incomodava os bundões era a diversidade das bundas que tinham de encarar.

A maioria, é verdade, eram bundas-moles convictas: raquíticas, tristonhas, sem umidade ou frescor.

Outras, eram típicas bundas-sujas, cuja ignorância e presunção chegava a assustar.

Porém, também as havia rosadas e rechonchudas, vivazes, selvagens, indomáveis, a convidar à vida e ao prazer.

Diante delas, os bundões religiosos se remexiam incomodados, como a contemplar o fruto proibido.

E os “bundões de bem” afirmavam que aquelas bundas eram um perigo às suas abundantes famílias, principais e secundárias, que mantinham debaixo de chineladas.

Formaram-se, então, grandes pelotões de patrulhamento pela Tradicional Família do Bundão (TFB).

Os pelotões passaram a perseguir pelas ruas as bundas vivazes, selvagens, indomáveis, para espancá-las, interná-las em hospícios, convertê-las à religião dos bundões, e até mesmo matá-las.

Fossem seres humanos, talvez alguém reagisse, gritasse: parem! Não façam isso!

Mas eram apenas bundas. E só.

E enquanto se ocupavam dessa perseguição, mais e mais a República do Bundão foi se assemelhando a um ânus escancarado: nações mais desenvolvidas enfiavam-lhe, a seco, toda sorte de retrocessos.

Os bundões perderam suas florestas, rios, bichos, petróleo, minérios.

O que as grandes multinacionais não puderam levar, foi destruído pela exploração predatória e pelos venenos que comercializavam para serem pulverizados sobre as plantações.

A paisagem, dantes verdejante, repleta de vida e de águas cristalinas, foi substituída por grandes desertos e rios de lama. E entre as árvores mortas e retorcidas já não se ouvia um único cantar.

O próprio coração dos bundões tornou-se árido.

A hipocrisia, a ignorância, pastores endemoniados e a violenta repressão ao prazer os haviam transformado em seres amargurados, cruéis, possessos de ódio, para os quais nem Deus já suportava olhar.

Mas tudo o que importava era que haviam se livrado daquelas bundas vivazes, selvagens, indomáveis.

Agora, todos se vestiam de rosa ou azul e se calavam diante das humilhações e chineladas.

E na República do Bundão reinava, enfim, a paz.

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