sábado, 12 de julho de 2008

Dantas






Uma voz isolada



I



Não queria me meter nessa polêmica.


Mas, cá com os meus botões, ando a pensar que o presidente do STF, Gilmar Mendes, tem, de fato, razão.


Lembro que, no episódio daquela criança arrastada por um carro em movimento, eu salientava justamente isto: a dificuldade de se ir contra a turba, de contrariar o circo romano, com a sua insaciável sede de sangue...


E eu, que compreendo muitíssimo bem o significado disso, tenho até medo de entrar em debates assim...


Por sorte ou azar, não conheço nem Gilmar Mendes, nem Daniel Dantas.


Sou, como vocês, uma fumadíssima cidadã, cansada de ver os meus suadíssimos impostos escoarem pelos ralos da corrupção.


Esse dinheirinho de imposto, para muitos tão forreca, mas que dá para pagar o aluguel da minha casa, a garantir, ao menos, um teto para a minha filha.


Quer dizer: compreendo muitíssimo bem a revolta de todos.


Até porque, exatamente como vocês, também conheço a situação dos milhões de brasileiros que nem acesso têm à Cidadania. Que morrem de fome e de doenças medievais. Esses milhões de brasileiros que sobrevivem que nem bicho.


É certo, também, que não possuo os altíssimos conhecimentos jurídicos que muitas das pessoas indignadas desse debate, parecem possuir.


Tenho comigo, apenas, esse bom senso básico de cada dia, que é uma dádiva que Deus nos deu.


Sou, apenas, por outras palavras, uma cidadã orgulhosa dessa extraordinária condição de cidadã.



II



Ao que já li, Daniel Dantas é mermo um cidadão complicado...


Um intelecto brilhante, uma inteligência rara, mas, que nenhum de nós gostaria de ter como vizinho...


Porque é um cidadão que só pensa em si mesmo. Que não está nem aí para esta sociedade que o fez cidadão.


Mesmo nadando em dinheiro, se “sentir vontade”, rouba; se “achar bacana”, mata. É espécie de genocida, que incensa o dinheiro e o poder, como tantos que existem por aí.


O problema, queridinhos, é que suamos tanto para construir esse ente chamado “Cidadão”, essa coisa chamada de Democracia, essa coisa chamada “sociedade de direitos”, que me parece, como direi, complexo, rifar tudo isso por causa desse “sociopata aparente”, desse tal de Daniel Dantas.


Lembro que estava em Canaã dos Carajás, num hotel, meio que isolada do mundo, quando estourou aquele caso da menina Isabella Nardoni.


E lembro que apesar de indignada, como todos vocês, com aquela violência, fiquei a pensar: mas, que diabos? Vão decretar a prisão preventiva desses dois para que o processo corra mais rápido? Foi isso mermo o que ouvi, no noticiário da Globo, com o repórter achando tudo isso bacana?


Quer dizer, dois cidadãos serão mantidos presos por causa do emperramento do Judiciário, por causa da incompetência do Estado, foi isso mermo o que ouvi?


Passou-se. Mergulhei no trabalho. O caso arrefeceu.


Mas, até hoje, aquilo ficou martelando na minha cabeça: vamos prender o cidadão, para que o Estado funcione, cumpra o dever para o qual, aliás, é regiamente pago.


A que ponto chegamos neste país, né mermo?, maninhos, nós, os formadores de opinião...


Andamos tão revoltados com a corrupção e com a injustiça que achamos muito natural pegar dois cidadãos e jogá-los no fundo de uma prisão infecta, simplesmente, porque “achamos” que são culpados...


E se, afinal, contra tudo o que vem sendo divulgado, constatar-se que são inocentes?


Quem pagará o que sofreram? – se é que existe alguma coisa, neste ou no outro mundo, que possa pagar...




III



No caso em tela, o do cidadão Daniel Dantas, parece-me que acontece coisa semelhante: vamos mantê-lo preso para que deponha; para pressioná-lo a dizer o que achamos (e esperamos) que venha a dizer...


E mermo que depoimentos, “confissões”, em circunstâncias extenuantes, não tenham esse valor que o nosso ideário judaico-cristão gosta de imaginar...


Ou, pior ainda, vamos mantê-lo preso para que experimente, ao menos que por uma noite, o inferno, embora que melhorado, das prisões brasileiras.


Vamos nos vingar dessa empáfia, desse nariz empinado que parece imaginar-se acima da Lei!...


Afinal, temos milhares, milhões de pretos, pobres e desprotegidos a superlotar as nossas prisões!... Então, que esse Barão, que esse rico, experimente isso, também!...


Mas que raciocínio tortuoso esse!...


Em primeiro lugar, quem foi que disse que a Lei nasceu para ser um mero instrumento de vingança social ou pessoal?


Uma coisa que pudéssemos usar para “restituir” a dor, a mágoa, a raiva realmente sentida, ou até uns meros recalques cotidianos?


Se é apenas para isso que se presta a Lei no moderno Estado de direitos, então, porque não voltarmos à lei de talião?


Aliás, sairia até mais barato queimarmos, enforcarmos, cortarmos as mãos, arrancarmos um olho em praça pública, ali mesmo, na efervescência da multidão, ao invés de mantermos toda essa arquitetura de direitos...


Mas, e se depois descobríssemos que enforcamos, queimamos, apedrejamos, cortamos a mão, arrancamos um olho ao inocente?


Que seria, desgraçadamente, de nós?




IV


Reportagem investigativa é uma coisa complicada e perigosa.


A gente vai ao limite da Democracia e da Justiça.


E é por isso que já ando até querendo deixar disso e ir fazer umas matérias bacanas, do cheiro-cheiroso do Ver-o-Peso.


Nós, os repórteres investigativos, como que conduzimos o sujeito, o cidadão à arena...


Embora que, muitas vezes, até fiquemos insistindo em chamar de indícios o que são, em verdade, provas...


Ou, como me disse, certa vez, um indignado técnico do TCU: “Vocês ficam desqualificando o trabalho da gente, chamando isso de indícios... Mas, isso são provas!... Provas!”


Obviamente, compreendi a indignação dele. Mas, continuei a bater apenas o suficiente, para acionar a Justiça.


Não é bacana aleijar. Bacana é levantar a ponta do véu e permitir o direito de defesa, até o veredicto final...


Mas, isso nem é chamado a essa história...




V




Para mim, o que ocorre no caso desses cidadãos ricos, que são super-expostos com braceletes prateados, é uma inversão de raciocínio.


Ora, pensamos, se tantos milhões de brasileiros pobres passam por isso, por que é que eles não deveriam passar?


Mas, na verdade, o correto seria pensarmos o seguinte: nenhum cidadão inocente pode passar por isso.


Quer dizer, não é simplesmente arrastando os muitos ricos pela lama em que chafurda, há 500 anos, a sociedade brasileira, que vamos, afinal, resolver os nossos problemas existenciais.


Mas, sim, ao garantir que nenhum cidadão, por mais pobre que seja, possa ser exposto a um espetáculo tão deprimente.


E a impressão que me fica, nesse negócio dos “ricos algemados”, é a de duas coisas.


Primeiro a de simplesmente purgarmos, através disso, a nossa inércia diante do desrespeito a que são submetidos, todo santo dia, milhares de cidadãos - e nós mesmos - por sua simples condição social.


Trata-se de coisa meio que psicanalítica: por um momento, nós, os classe média, nós, os intelectuais, nós, os formadores de opinião, nos sentimos como que quites com o mundo, por tudo o que, “sabujisticamente”, suportamos. Afinal, o rico algemado é o chefe imediato, o vizinho, o dono do apartamento, o patrão...


É como se aqueles “belos braceletes”, nem que fosse por um momento, nos redimissem da inércia em relação às nossas próprias vidas e às vidas de tantos milhões...


Em suma, diria alguém: trata-se de mera euforia catártica...


Em segundo lugar, essa “euforia braceletária” ajuda a esconder outra culpa bem mais profunda em nós.


Por que é que existem, no Brasil, tantos daniéis Dantas?


Por que é que eles estão ali, ricos, belos e indomáveis, em sua sanha de poder?


Quantas vezes, em nosso cotidiano, não incensamos isso, essa coisa do “jeitinho brasileiro”, essa coisa da “lei do mais forte”, essa coisa da “esperteza”?


Quantas vezes não ajudamos, por nossas crenças, a formar novos e novos daniéis Dantas?


Quantas vezes deixamos de devolver o troco que nos foi dado a mais, pelo rapaz ou pela moça, que imaginamos, por isso, burro?


Ao invés de chegarmos e dizermos aquele cidadão, que, por alguma razão, talvez estivesse meio que “despassarado”: “você me deu dinheiro a mais!”.


Quantas vezes já não pisamos no pescoço da própria mãe, apenas para subir socialmente, “porque não sou burro de não aproveitar essa chance”?


Quantas vezes esse raciocínio já não esteve presente em cada brasileiro?


Quantas vezes já não parimos um Daniel Dantas?




VI



Mas, este post não pretende se apoiar em qualquer falácia, em um apelo básico à piedade, digamos assim.


Quer ser uma coisa lógica.


E coisa lógica é que o cidadão Daniel Dantas, apesar de tudo o que eu penso dele, do que eu imagino dele – que rouba, quando sente vontade; que mata, quando quer; que estuprou a menininha que morava ali embaixo – em verdade, não oferece um perigo objetivo à sociedade.


Até prova em contrário, nunca matou nem estuprou ninguém.


Também, que eu saiba, nem dirige bêbado, nem sai por aí dando porrada nos outros.


E o meu conceito dele, de genocida, tenho de admitir, é meramente subjetivo; uma crença derivada das minhas convicções acerca do uso do dinheiro público.


Mais que isso: assim como os Nardoni, Daniel Dantas não pode ser mantido preso apenas para que o Estado, a Justiça, funcione a contento.


Se a polícia não colheu provas suficientes e as provas destrutíveis que ficaram são tantas que podem até interferir no resultado do julgamento, a culpa é da polícia, não do cidadão Daniel Dantas.


Se ele não fala, apesar de todos os grampos; se, apesar de todas as investigações, não se consegue estabelecer a ligação objetiva dele a um grupo criminoso, a culpa é da polícia, não do cidadão Daniel Dantas.


Se ele oferece dinheiro, propina, suborno a um delegado ou investigador e o agente público aceita, a culpa é da polícia, do Estado, não, apenas, do cidadão Daniel Dantas.


É corruptor? É sim. E tem de pagar por isso, se – e se – tal for provado.


Mas, isso não exime nem mesmo a simples “tentação” dos cidadãos, dos agentes públicos, pagos – e muito bem pagos, para a maioria dos brasileiros.


Se eles se sentem tentados, apesar do que ganham, apesar dos sistemas de controle da sociedade e do Estado que deveriam existir, a culpa continua sendo deles e da sociedade – e não do cidadão Daniel Dantas.


Daniel Dantas não é “O” grande Satã da sociedade brasileira.


Mesmo que fosse, teria de ser respeitado em direitos básicos, como são até mesmo os traficantes, que obrigam o Estado a gastar milhões para os regenerar.


E eu, pragmaticamente, os fritaria na cadeira elétrica, assim como fritaria a todos os Dantas da vida, caso não dessem nem sinal de regeneração.


Porque, assim como não defendo, também não estou para sustentar, indefinidamente, bandido.


Pragmaticamente, faria isso, assim como estou a falar a vocês dos direitos que todos eles têm e que precisamos respeitar.


Não defendo bandido. Mas, defendo, sim, o direito de defesa.


E o direito de os cidadãos, por piores que nos pareçam, não serem simplesmente penalizados pela incompetência do Estado.



FUUUUIIIIII!!!!

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