Triste um Ministério Público que tem como procurador
de Justiça e “ouvidor” um cidadão como Ricardo Albuquerque, para quem os índios
são preguiçosos, “não gostam de trabalhar”, já que, segundo ele, preferiram a morte
à escravidão, o que teria levado à necessidade de o Brasil buscar seres humanos
negros, para escravizar.
Trata-se de um pensamento extremamente preconceituoso
e desrespeitoso, que vai na contramão de todo o esforço da sociedade brasileira
para tentar compensar um conjunto de crimes, que, em verdade, não podem ser compensados:
o horror da escravidão negra e o genocídio das populações indígenas.
Ao que parece, para o “ouvidor”
a escravidão é quase uma festa, para quem gosta de trabalhar.
E a seguir-se nessa linha de raciocínio, seria o caso
de se questionar o porquê das ações do próprio Ministério Público para combater
o trabalho escravo, que até hoje atormenta o Brasil e o Pará, em muitas
propriedades rurais.
Afinal, para que retirar esses escravos dali, se devem
estar felicíssimos com o trabalho de sol a sol, embora obrigados a dormir no
chão, comer alguma espécie de babugem, pegar porrada e até a beber a mesma água
que é dada aos animais?
Pois é. Olhar a condição desses escravos de hoje dá uma
ideia, embora muitíssimo pálida, do que foi a escravidão negra.
E ontem como hoje, por que é que muitos desses seres
humanos se submetem à escravidão? Por que gostam de trabalhar? Por que não têm
qualquer apreço à liberdade?
Não. Eles se submetem porque têm medo.
Porque o instinto básico de qualquer ser humano é a
preservação da própria vida.
Um instinto tão forte que só é muitas vezes superado
pela preservação da própria descendência.
Raros, muito raros, são os animais humanos que
conseguem colocar em primeiro lugar a preservação da espécie, e até de tudo o
que vive.
Não por acaso, nós os consideramos sobre-humanos, heróis
e até “iluminados”.
Então, creio que esta é a primeira coisa que o “ouvidor”
do Ministério Público do Estado do Pará precisa entender: negros são seres humanos
e agem como todo e qualquer ser humano, para preservar a própria vida.
Ou seja, doutor, não são apenas os brancos que têm
amor à vida e à liberdade. Por mais incrível que isso lhe pareça, um negro
gosta tanto de viver quanto o senhor.
Mas há outra coisa importante que o doutor Ricardo Albuquerque talvez
consiga entender, caso volte a estudar: a escravidão negra não foi de forma
alguma pacífica, e as próprias comunidades quilombolas, às quais aparentemente
ele despreza, comprovam essa resistência.
Apesar do medo da morte, muitos fugiram para
quilombos; muitos tentaram alcançar o sonho da liberdade.
Muitos morreram tentando, doutor.
Apesar dos estupros, torturas, espancamentos que deixavam
as costas em carne viva; dos membros esmagados, queimados ou até arrancados
(olhos, genitálias, dentes, seios), para obter essa submissão pacífica que o
senhor parece pensar que existiu, os negros continuaram a resistir, a fugir, a se
rebelar, e até a se matar, como derradeira forma de resistência.
Apesar das crueldades inimagináveis e das manipulações
culturais e mentais, com a mistura de indivíduos de diferentes nações africanas,
para dificultar a comunicação; a distribuição de recompensas e castigos e até as promessas
de futuras alforrias, para “amansá-los”, os negros não se renderam à
escravidão, como ainda hoje não se rendem a essa escravidão mal disfarçada dos
morros, favelas e baixadas, de Norte a Sul do Brasil.
E quanto aos índios?
Novamente, doutor, temos de falar sobre seres humanos,
embora talvez o senhor imagine, da mesma forma que pensava o homem medieval,
que índios não têm alma, ou, se a possuem, é inferior à sua.
A resposta do animal humano depende em muito do território
em que se encontra: o próprio ou o desconhecido.
No caso dos negros, eles eram arrancados de seu
território, misturados a integrantes de outras nações, espremidos nos porões de
navios imundos, nos quais passavam meses a sofrer com a fome, o calor, a sede,
e a ver pessoas morrendo ao lado, todo santo dia.
Quando eram desembarcados aqui, um território
totalmente desconhecido, esses seres humanos, acorrentados, eram levados para
leilões e senzalas, marcados a ferro e mantidos aprisionados, com fome, sede,
frio e toda sorte de violências, muitas delas “mães” das torturas que ainda
hoje vemos em nossas penitenciárias e delegacias policiais, e que são
combatidas pela instituição que o senhor representa.
Obviamente, como todo e qualquer ser humano, esses
africanos devem ter experimentado um torpor inicial, além de muito, muito terror.
Mesmo assim, como já visto, com o passar do tempo conseguiram
resistir de forma impressionante, e através dos séculos.
Já a resposta dos índios, doutor, tinha de ser necessariamente
mais imediata e até mais agressiva, afinal, eles estavam em seu território.
Ou o senhor desconhece que este imenso território, a
que chamamos Brasil, pertencia, em verdade, a inúmeras nações indígenas, que
foram espoliadas e quase exterminadas pelos colonizadores?
Então, a resposta indígena variou desde a resistência armada
e à recusa de qualquer forma de colaboração com o invasor (aquilo a que o
senhor chama de “preguiça”), até a acordos, para tentar se sobrepor a nações ou
a grupos rivais.
Rigorosamente nada diferente do que vimos e vemos em
qualquer território invadido, e em qualquer época, eis que é da natureza humana
que nos une que estamos a falar.
Assim, doutor, penso que o seu problema é que o
senhor não consegue enxergar negros e índios como seres humanos.
E talvez até por esses tempos sombrios que vivemos no Brasil
e no mundo, ache “normal” expressar esse tipo de pensamento odioso, que nega
humanidade às pessoas e busca exterminar até a história de resistência delas.
É por isso, doutor, que o senhor também acredita que
não temos qualquer dívida em relação aos negros: ora, se eles não são humanos,
por que deveríamos sentir um mínimo de dor de consciência, de empatia, de misericórdia até por todas as
atrocidades que eles sofreram e ainda sofrem, não é?
Que vergonha, doutor Ricardo Albuquerque, que o senhor
representa para o Ministério Público do Estado do Pará e de todo o Brasil.
Que vergonha que o senhor e aqueles que pensam como o
senhor representam para toda a espécie humana.
O Ministério Público, definitivamente, não é o seu
lugar.
E muito menos em um cargo tão importante para a
sociedade, como é o de ouvidor.
E o que eu espero é que venham medidas rigorosas, e
não apenas palavras, do nosso Ministério Público, a provar que essa instituição
de fato não compactua com o seu claríssimo e criminoso racismo.
FUUUIIIII!!!!
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Ouça o áudio no DOL, com as declarações do
procurador Ricardo Albuquerque: https://www.diarioonline.com.br/noticias/para/540835/escravidao-foi-porque-indio-nao-gosta-de-trabalhar-afirma-procurador-do-mppa_-ouca-o-audio?fbclid=IwAR2qDBIMXMa5QXAxMBRvCjXO2HbDfA6u1XaeD6XlUu9Si8w4dAci6E5c6d4
No G1, ele tenta se explicar dizendo que as
suas vergonhosas declarações estão fora do contexto: https://g1.globo.com/pa/para/noticia/2019/11/26/procurador-de-justica-do-para-diz-que-problema-da-escravidao-no-brasil-foi-porque-indio-nao-gosta-de-trabalhar.ghtml?fbclid=IwAR3f6tjjmTus5HFQmUN5g7qfx5CU_FFhxkFs6S0oNxj6I8byhiKYcAEmb1s
Abaixo, a nota divulgada pelo Ministério
Público do Pará sobre as declarações do procurador:
NOTA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DO
PARÁ À IMPRENSA
O Ministério Público do Estado do Pará (MPPA) repudia
o teor do áudio que circula nas redes sociais onde constam manifestações do
Procurador de Justiça Ricardo Albuquerque da Silva referentes à questão racial
de negros e índios, cujo teor reflete tão somente a opinião pessoal do referido
membro da instituição.
Em relação a questão racial, o MPPA tem trabalhado
para assegurar a implementação de políticas públicas para garantir às
populações negras e indígenas a efetivação da igualdade de oportunidades.
No último dia 20 a instituição promoveu evento em
alusão ao Dia da Consciência Negra, que reuniu ONGs e a sociedade civil num
debate sobre discriminação racial e religiosa no Brasil. O órgão também vem
implementado políticas afirmativas no âmbito da própria instituição como, por
exemplo, a decisão do Colégio de Procuradores de Justiça (CPJ), em abril deste
ano, de incluir cotas para estudantes quilombolas e indígenas nas seleções de
estagiários de nível superior realizadas pela instituição.
Nesse sentido a instituição também tem fiscalizado e
cobrado ações afirmativas, fiscalizando os programas e medidas especiais
adotados pelo Estado e pela iniciativa privada para a correção das
desigualdades raciais e para a promoção da igualdade de oportunidades.
Finalmente, este órgão reafirma não compactuar com
qualquer ato de preconceito ou discriminação a grupos vulneráveis da sociedade.