quinta-feira, 8 de agosto de 2019

Altamira: um massacre que se reproduz todos os dias, em todo o Pará



 



O artigo abaixo é muito, muito bom: sensível, mas também angustiante e aterrador, deixa a gente a pensar sobre o que estamos a fazer, afinal, com esses milhares de jovens que trancafiamos nas nossas penitenciárias.

O que pretendemos com isso? 

Aonde isso nos levará?

Não deixe de ler. Vale cada segundo de leitura.
  




Um grama, duzentos e dezessete miligramas de culpa


Por Graziela Paro Caponi, defensora pública*


(Artigo publicado originalmente no site Justificando: http://www.justificando.com/  )




Que fique bem claro: ser Defensora Pública no Pará é gratificante e minha maior realização. Mas, também, é uma fonte interminável de angústia.  O Massacre de Altamira se replica, em menores proporções, ao longo de todo o Estado. É um contínuo sentimento de impotência, vazio e frustração.  


Neste momento, dez horas de uma manhã de sábado, repousam ao meu lado pelo menos vinte processos com a temível fitinha vermelha, que indica se tratarem de réus presos. É preciso correr contra o tempo, acordar mais cedo, dormir à base de remédios, abdicar de finais de semana, esquecer dos amigos, da vida, dos livros de mitologia que eu lia nas horas vagas e de todo o resto porque, afinal, há a liberdade de outros seres humanos em jogo. Não só a liberdade: a vida, a saúde deles também. Oprimidos em celas superlotadas, eles definham por epidemias de doenças incontroláveis. E morrem. O tempo todo, um por vez, eles morrem. É um excruciante nado contra a corrente. 

 
Abro o primeiro processo e vou direto ao que interessa: o laudo de constatação definitivo. Que bom que aqui ele existe, né? Eu pensava que fosse lenda, “história de pescador-defensor”, mas com o tempo passei a ver condenações que não explicitavam a quantidade de droga, o tipo de droga, ou mesmo sem droga nenhuma. Gente presa por guardar argamassa ou pó royal. E sempre a mesma pergunta: com base em quê? Tá lá no laudo, discriminado: 1,217g de óxi. Dependendo da distância, não daria pra enxergar isso a olho nu. Uma moeda de um centavo de real, por exemplo, pesa 2,45 gramas.


O óxi, pra quem não conhece, é um desses novos derivados da cocaína que, tal como o crack, se alastrou como fenômeno entre as pessoas mais pobres, cheio de aditivos que o tornam barato e acessível. Longe do glamour dos helicópteros e aviões de cocaína, longe da farinha puríssima que respinga dos narizes dos playboys… aqui não chegam as caríssimas drogas sintéticas que fazem sucesso aí fora. Ninguém teria dinheiro pra comprar isso, nem se realmente traficasse de verdade.


Meu dia é assim: um por um, os processos se avolumam. Raríssimo o processo que passa de dois gramas, quantidade esta que, segundo estudos, é inferior à própria média de consumo diário de uma única pessoa drogadicta. Mas a gente não está aqui pra fazer ou usar ciência, né. A única ciência que interessa, aliás, é a matemática – 33 mais 35, acrescenta mais um ano, esquece a detração, soma mais um pouquinho e pronto. Cumprir as metas, extinguir processos, produtividade equivale a promoção. Essas fitinhas vermelhas não são pessoas, são números.


E fica desse jeito, então: esses meninos muito jovens, presos sem mandado, sem audiência de custódia, sem direito a um defensor público que os acompanhe na delegacia, sem qualquer outro elemento que sugira a traficância, saem das ruas direto para o nosso moedor de carne humana – nossos presídios. Lá em cima, nas instâncias superiores, Ministro Barroso está dizendo que um quilo de maconha não justifica prisão. Mas aqui embaixo é diferente. Justifica prisão e remessa pra capital do Estado, onde não recebem visitas sequer do defensor público natural da causa. É um truque moderno esse: eu prendo, mando pra bem longe, e depois condeno porque ele se “desincumbiu do seu ônus de fazer prova em contrário”, pra derribar a infalível e divina palavra policial. Mas como é que ele vai sair atrás de testemunhas ou documentos, como vai produzir provas em seu favor, se ele está preso?!


Destinatários de uma ferocidade inexplicável, eles se multiplicam. E o Estado, que sempre lhe virou as costas, agora se joga sobre eles com fúria, sufocando-os com seu peso. Hipócrita, esconde a própria face: ali dentro não vai ter estudo, trabalho, assistência psicológica, enfim, não vai ter nada para guia-lo, exceto, evidentemente, a tal guia de execução. E o que essa guia diz? Primário, seis anos, regime inicial fechado. Volto pra sentença, pra tentar encontrar o fundamento utilizado pra denegar o semiaberto: a quantidade de droga. O quê? Incrédula, penso que pode ser efeito do cansaço, do esgotamento físico e mental, mas eu não tinha lido errado mesmo não: 1,217g. 


Um grama, duzentos e dezessete miligramas é quase o peso da responsabilidade que o Judiciário admite ter perante o caos e a falência do sistema carcerário estadual. É também o peso da minha força em comparação com esse rolo compressor que passa por cima do corpo desses meninos, todos os dias. O massacre de Altamira não nos ensinou nada, absolutamente nada. Simplesmente continua tudo do mesmo jeito.


Eu vou ter que redigir o texto, digitalizar as peças obrigatórias e esperar a internet funcionar pra tentar protocolar um habeas corpus, que provavelmente será rejeitado liminarmente. Talvez eu não tenha capacidade técnica, inteligência emocional ou qualquer coisa semelhante pra lidar com essa jurisprudência defensiva que se avoluma. Cada nova cartada que tento, uma nova derrota: peço pra ser intimada pro julgamento, uma sustentação oral, qualquer coisa que me ajude a convencê-los… mas só descubro acerca da sessão muito tempo depois, quando o acórdão já foi publicado. Eu não consigo chegar sequer inteira ao fim do dia, como é que eu vou chegar no STF ou no STJ? E se eu der sorte de conseguir um alvará de soltura, poucos dias depois esse mesmo menino volta pra minha mesa, na forma de outro processo, com uma capa mais limpa e uma nova fitinha vermelha. Porque afinal de contas, a polícia também precisa de números, e a fé pública tá aí pra eximí-los de qualquer responsabilidade no cumprimento de seus deveres. Eu devo ter visto um ou dois inquéritos policiais formalizados, no máximo; se vi três mandados de busca e apreensão na minha carreira foi muito. O que eu posso fazer? Em nome desse mesmo Estado racista e genocida, segurar na mão das mães que esperam horas pra receber atendimento e dizer: senhora, me desculpe por seu filho ter sido degolado. Me desculpe por circularem imagens do corpo dele e pelo desrespeito ao seu luto. Me desculpe por não ter conseguido tirá-lo de lá.  Eu tentei, fui inútil. Desculpe.


O genial Alysson Mascaro já dizia que ao se prender um usuário, ou mesmo um pequeno traficante, não se rompe o círculo vicioso do crime organizado, sequer se retira um menino do tráfico. Pelo contrário: abre-se uma nova vaga, um novo posto de trabalho, para que outro menino seja cooptado e assuma o lugar dele.  Mas a gente segue assistindo a esse espetáculo bárbaro, de um Estado que reiteradamente troca políticas públicas por política criminal, sem sentir nem um ou dois gramas de culpa. 



*Graziela Paro Caponi é pós-graduada em Ciências Penais pela Universidade Anhanguera/UNIDERP. Defensora Pública do Estado do Pará.

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