O artigo abaixo é muito, muito bom:
sensível, mas também angustiante e aterrador, deixa a gente a pensar sobre o que
estamos a fazer, afinal, com esses milhares de jovens que trancafiamos nas
nossas penitenciárias.
O que pretendemos com isso?
Aonde isso nos levará?
Não deixe de ler. Vale cada segundo de leitura.
Um grama, duzentos e dezessete miligramas de culpa
Por Graziela Paro Caponi, defensora
pública*
Que fique bem claro: ser Defensora Pública no Pará é
gratificante e minha maior realização. Mas, também, é uma fonte interminável de
angústia. O Massacre de Altamira se
replica, em menores proporções, ao longo de todo o Estado. É um contínuo
sentimento de impotência, vazio e frustração.
Abro o primeiro processo e vou direto ao que
interessa: o laudo de constatação definitivo. Que bom que aqui ele existe, né?
Eu pensava que fosse lenda, “história de pescador-defensor”, mas com o tempo
passei a ver condenações que não explicitavam a quantidade de droga, o tipo de
droga, ou mesmo sem droga nenhuma. Gente presa por guardar argamassa ou pó
royal. E sempre a mesma pergunta: com base em quê? Tá lá no laudo,
discriminado: 1,217g de óxi. Dependendo da distância, não daria pra enxergar
isso a olho nu. Uma moeda de um centavo de real, por exemplo, pesa 2,45 gramas.
O óxi, pra quem não conhece, é um desses novos
derivados da cocaína que, tal como o crack, se alastrou como fenômeno entre as
pessoas mais pobres, cheio de aditivos que o tornam barato e acessível. Longe
do glamour dos helicópteros e aviões de cocaína, longe da farinha puríssima que
respinga dos narizes dos playboys… aqui não chegam as caríssimas drogas
sintéticas que fazem sucesso aí fora. Ninguém teria dinheiro pra comprar isso,
nem se realmente traficasse de verdade.
Meu dia é assim: um por um, os processos se avolumam.
Raríssimo o processo que passa de dois gramas, quantidade esta que, segundo
estudos, é inferior à própria média de consumo diário de uma única pessoa
drogadicta. Mas a gente não está aqui pra fazer ou usar ciência, né. A única
ciência que interessa, aliás, é a matemática – 33 mais 35, acrescenta mais um
ano, esquece a detração, soma mais um pouquinho e pronto. Cumprir as metas,
extinguir processos, produtividade equivale a promoção. Essas fitinhas
vermelhas não são pessoas, são números.
E fica desse jeito, então: esses meninos muito jovens,
presos sem mandado, sem audiência de custódia, sem direito a um defensor
público que os acompanhe na delegacia, sem qualquer outro elemento que sugira a
traficância, saem das ruas direto para o nosso moedor de carne humana – nossos
presídios. Lá em cima, nas instâncias superiores, Ministro Barroso está dizendo
que um quilo de maconha não justifica prisão. Mas aqui embaixo é diferente.
Justifica prisão e remessa pra capital do Estado, onde não recebem visitas
sequer do defensor público natural da causa. É um truque moderno esse: eu
prendo, mando pra bem longe, e depois condeno porque ele se “desincumbiu do seu
ônus de fazer prova em contrário”, pra derribar a infalível e divina palavra
policial. Mas como é que ele vai sair atrás de testemunhas ou documentos, como
vai produzir provas em seu favor, se ele está preso?!
Destinatários de uma ferocidade inexplicável, eles se
multiplicam. E o Estado, que sempre lhe virou as costas, agora se joga sobre
eles com fúria, sufocando-os com seu peso. Hipócrita, esconde a própria face:
ali dentro não vai ter estudo, trabalho, assistência psicológica, enfim, não
vai ter nada para guia-lo, exceto, evidentemente, a tal guia de execução. E o
que essa guia diz? Primário, seis anos, regime inicial fechado. Volto pra
sentença, pra tentar encontrar o fundamento utilizado pra denegar o semiaberto:
a quantidade de droga. O quê? Incrédula, penso que pode ser efeito do cansaço,
do esgotamento físico e mental, mas eu não tinha lido errado mesmo não: 1,217g.
Um grama, duzentos e dezessete miligramas é quase o
peso da responsabilidade que o Judiciário admite ter perante o caos e a
falência do sistema carcerário estadual. É também o peso da minha força em
comparação com esse rolo compressor que passa por cima do corpo desses meninos,
todos os dias. O massacre de Altamira não nos ensinou nada, absolutamente nada.
Simplesmente continua tudo do mesmo jeito.
Eu vou ter que redigir o texto, digitalizar as peças
obrigatórias e esperar a internet funcionar pra tentar protocolar um habeas
corpus, que provavelmente será rejeitado liminarmente. Talvez eu não tenha
capacidade técnica, inteligência emocional ou qualquer coisa semelhante pra
lidar com essa jurisprudência defensiva que se avoluma. Cada nova cartada que
tento, uma nova derrota: peço pra ser intimada pro julgamento, uma sustentação
oral, qualquer coisa que me ajude a convencê-los… mas só descubro acerca da
sessão muito tempo depois, quando o acórdão já foi publicado. Eu não consigo
chegar sequer inteira ao fim do dia, como é que eu vou chegar no STF ou no STJ?
E se eu der sorte de conseguir um alvará de soltura, poucos dias depois esse
mesmo menino volta pra minha mesa, na forma de outro processo, com uma capa
mais limpa e uma nova fitinha vermelha. Porque afinal de contas, a polícia
também precisa de números, e a fé pública tá aí pra eximí-los de qualquer
responsabilidade no cumprimento de seus deveres. Eu devo ter visto um ou dois
inquéritos policiais formalizados, no máximo; se vi três mandados de busca e
apreensão na minha carreira foi muito. O que eu posso fazer? Em nome desse
mesmo Estado racista e genocida, segurar na mão das mães que esperam horas pra
receber atendimento e dizer: senhora, me desculpe por seu filho ter sido
degolado. Me desculpe por circularem imagens do corpo dele e pelo desrespeito
ao seu luto. Me desculpe por não ter conseguido tirá-lo de lá. Eu tentei, fui inútil. Desculpe.
O genial Alysson Mascaro já dizia que ao se prender um
usuário, ou mesmo um pequeno traficante, não se rompe o círculo vicioso do
crime organizado, sequer se retira um menino do tráfico. Pelo contrário:
abre-se uma nova vaga, um novo posto de trabalho, para que outro menino seja
cooptado e assuma o lugar dele. Mas a
gente segue assistindo a esse espetáculo bárbaro, de um Estado que reiteradamente
troca políticas públicas por política criminal, sem sentir nem um ou dois
gramas de culpa.
*Graziela Paro Caponi é pós-graduada em
Ciências Penais pela Universidade Anhanguera/UNIDERP. Defensora Pública do
Estado do Pará.
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