Ao contrário do que muito boa gente acredita, a frase
acima, proferida pela ministra Damares Alves, não é uma questão “menor”.
Para quem ainda não entendeu: não se está a tratar de
mera indumentária, cor de roupa, mas de padrões comportamentais.
As mulheres cor de rosa de Damares são pouco mais que
bonecas infláveis.
Como naquela música de Chico Buarque, não têm gosto ou
vontade, nem defeito, nem qualidade.
Vivem apenas em função de um homem e da família.
Tudo aquilo que eventualmente expressem são meros
caprichos infantis, que os seus “tutores” atenderão ou não, de acordo com os
comportamentos mais ou menos dóceis que apresentem.
São as “belas, recatadas e do lar”, o padrão que vem
sendo repisado para nós com cada vez mais ênfase, a fim de que “deixemos dessas
coisas de feminismo” e nos recolhamos à “santidade” de nossos lares.
De igual forma, no mundo azul e rosa de Damares não há
lugar para os gays: são “aberrações da natureza”, que devem ser “curados” ou
“convertidos”.
Ninguém deve ligar a mínima se forem humilhados, espancados
ou até assassinados: afinal, “procuraram”.
E se quiserem sobreviver, sem “cura” ou “conversão”,
terão de esconder a sua “gayzisse” do olhar da sociedade e, se possível, a viver
bem longe das famílias dos “cidadãos de bem”.
É que no estranho universo de muitos e muitas Damares,
no qual a Terra é plana e tudo se mostra invertido, viver uma vida plena, longe
do armário, não é direito, mas, “um privilégio inaceitável”.
O que as esquerdas ainda não entenderam (daí estarem
mais perdidas do que cego em tiroteio) é que no centro dessa crise que o Brasil
atravessa não está uma questão econômica ou político-partidária.
O xis da questão é cultural: é o machismo.
É o medo pelas mudanças estruturais que invadem os
lares, as famílias, e que veio se somar ao medo que toma conta das ruas, em
função da violência urbana.
Os eleitores de Bolsonaro não moverão uma palha, se
ele privatizar até o ar que respiramos.
Não estão nem aí para as terras indígenas e
quilombolas, para o meio ambiente e para a eventual extinção da Justiça do
Trabalho.
Por incrível que pareça, estão dispostos até mesmo a
abrir mão de direitos trabalhistas, desde que se recomponham os papeis
tradicionais da “família brasileira”.
E não apenas os homens pensam assim: muitas mulheres
apoiam Bolsonaro pelo mesmíssimo motivo.
No entanto, há gradações nesse eleitorado.
Há desde os que pretendem a “supressão” dos gays e a
total submissão das mulheres, até os que defendem algum respeito às mulheres (desde
que “direitas” e “femininas”); e que apresentam alguma tolerância aos gays,
desde que sem o “privilégio” de uma existência plena.
A indignação que varreu as redes sociais diante da
fala da ministra não é, portanto, uma coisa de “esquerdistas infantis”.
Pelo contrário: a estereotipia radical da ministra e a
ação das redes sociais fizeram muito mais para sacudir essas pessoas do que
todas as postagens das esquerdas, somadas, até aqui.
É que o medo à liberdade se chocou com outra força
gigantesca: o medo de um aprisionamento à moda Talibã.
À empatia e à solidariedade tão humanas somou-se o medo
animal de uma invasão ao “território” privado.
E, por um breve momento, não foi apenas o “bandido”, o
“petista”, o “comunista” o ameaçado: mas ele, o “cidadão de bem”.
No Brasil, milhões de lares são chefiados por
mulheres, o que acaba por construir uma outra imagem da mulher acerca de si
mesma: sai a fêmea frágil e indefesa; entra a fêmea autônoma e batalhadora.
A força do exemplo que contagia vem, também, daqueles
lares nos quais as mulheres conquistaram uma relação de igualdade com o seu
parceiro, e até daquelas que vivem sozinhas, sem marido ou filhos.
Vem de todas aquelas que descobriram que, apesar de
todos os preconceitos, de todas as discriminações, são capazes, sim, de
garantir o próprio sustento e de ser felizes sozinhas, já que cercadas por toda
uma rede de relacionamentos: amigos, familiares, colegas de trabalho,
namorados, paqueras.
Uma rede às vezes mais rica e satisfatória do que
aquela que tiveram ou que teriam em um casamento.
O fato de o ideal das mulheres ir se deslocando do
“cavaleiro de armadura brilhante” (o “príncipe” da Damares) em direção à
conquista da independência financeira e à expressão de uma vontade própria tem
feito “desaparecer o chão” aos homens (e a muitas mulheres também).
É que nos encontramos, todos, em pleno processo de
reconstrução de identidades: todo o “velho” é questionado. E o “novo” que bate
à porta ameaça as hierarquias.
Talvez seja essa “falta de chão” a explicar, aliás, o
nojo, o ódio, que os gays, especialmente os de sexo masculino, provocam em
muitos desses homens: o “efeminado” fragiliza ainda mais a certeza da
supremacia física, que embasa a dominação.
O “efeminado” abre mão desse poder, para tornar-se
semelhante ao dominado.
Em vez de penetrar, é penetrado.
Tem as suas entranhas invadidas pelo pênis, que, no
imaginário masculino, é um totem paradoxal: tem o poder de garantir todo o
poder e glória a quem o possui, ao mesmo tempo em que contamina, inferioriza,
degrada, quem o recebe.
Tanto assim que é necessário todo um ritual de
cânticos, bênçãos e incensos, para “santificar” a penetração...
As incertezas advindas dessa reconstrução identitária também
explicam o ódio às feministas, reduzidas a monstros-fedorentos-de-sovacos-peludos,
cujas principais diversões são defecar pelas ruas e se masturbar com
crucifixos.
Neste Brasil assombrado por tantos “demônios”, que
transformaram milhões de cidadãos em uma espécie de bebedores compulsivos de
ayahuasca, as feministas estariam empenhadas em castrar esse santo graal que é
o pênis ereto, ao redor do qual todo o universo tem de girar.
O pênis ereto, que faz do homem o senhor de todo o prazer
e de todos os corpos que penetra. A vara, o cajado, o bastão, que lhe confere o
poder de dominar o lar e o próprio mundo.
Que ninguém se iluda, portanto, a acreditar que a fala
da ministra foi apenas manobra diversionista. Não foi.
Os grandes alvos dos eleitores de Bolsonaro são os
gays e as feministas. E toda e qualquer mulher independente, e todo e qualquer
ser humano que não se adeque aos padrões comportamentais da “família brasileira”.
O próprio ódio ao PT não passa de derivação: o que
essas pessoas odeiam não é o PT em si. Mas o fato de identificarem os governos
desse partido como os “autores” dos direitos conquistados por mulheres e gays.
O crime de feminicídio; o sexo não consentido visto
como estupro, mesmo em se tratando do marido; a ameaça de ainda maior
flexibilização do aborto; o casamento gay, a possibilidade de adoção de
crianças por casais homossexuais, tudo isso, nas cabeças dessas pessoas,
atingiu o limite suportável – e por “obra” do PT.
Até a corrupção é mera desculpa, para não assumir os
reais motivos que levaram a essa revolta: basta ver o pouco caso que essas
pessoas fazem dos escândalos cabeludos que envolvem os Bolsonaro, o motorista
Queiroz e tantos outros desse governo, para se perceber que elas, em verdade, não
estão nem aí para a corrupção.
Elas apenas pegaram carona na ação orquestrada dos
inimigos do PT, para ajudar a afastar o partido que julgam responsável por “tudo
isso que está aí”: o “tutor” sendo preso por feminicídio, ao matar
“merecidamente” a tutelada que o abandona, trai ou simplesmente questiona; o
marido, o “senhor”, sendo acusado de estupro, apesar de a Bíblia “determinar”
que a “serva”, a esposa, tem de fazer de um tudo para agradar o marido;
“vagabundas” acusando “homens de bem” de assédio e até de estupro, apesar de
andarem por aí “com a bunda à mostra”; homens se deitando e até se casando com
homens, a “conspurcar” o padrão macho-fêmea que “Deus abençoou”.
Então, a fala de Damares era para ser, em verdade,
mais um grito de guerra, para animar a galera bolsonarista. Uma espécie de proclamação da "nova era", como ela mesma disse.
O revertério só ocorreu porque o radicalismo invadiu o
básico do básico do “território” privado, assustando as alas moderadas dos
eleitores bolsonaristas.
E é nessas alas que é preciso investir, para mostrar o
que aguarda a sociedade brasileira, caso não consigamos frear esses xiitas.
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