Custo a acreditar que a maior autoridade do país, com a história de lutas e sacrifícios por liberdades democráticas que ostenta, tenha assinado uma medida tão odiosa como o Decreto nº 7777, de 24 de julho de 2012, que confere competência aos ministros de Estado supervisores de órgãos ou entidades em que ocorrer greve, paralisação ou retardamento de atividades e serviços públicos para compartilhar a execução da atividade ou serviço com Estados, Distrito Federal ou Municípios, mediante convênio.
O decreto parece ignorar que vivemos numa república federativa.
O decreto parece ignorar que cada esfera de poder e cada ente político têm competências conferidas pela Carta Constitucional, que é o pacto soberano que rege uma sociedade democrática e plural, como é o Brasil.
Não podemos concordar que o governo federal, num ato unilateral, pretenda empastelar tais competências, sob o esfarrapado argumento de defesa do interesse público, pois se tem uma coisa que atenta contra os interesses da sociedade são esses arroubos autoritários e manobras diversionistas que governantes de plantão lançam mão quando se veem incapazes de resolver, pela via democrática, os conflitos próprios de uma sociedade plural.
Com essa medida o governo demonstrou, por um lado, uma flagrante incapacidade e desinteresse em dialogar com os servidores públicos federais que lutam por mais dignidade no exercício das atividades públicas que lhes foram atribuídas por lei e, por outro, um profundo desrespeito pelos Estados e Municípios, já tão sacrificados pela crescente e espúria concentração de recursos nos cofres da União.
Um servidor público, em especial aqueles que exercem atividades de regulação e fiscalização, não se forma no banco da escola ou da faculdade, mas na labuta diária da função pública.
Tais atividades públicas de regulação e fiscalização das atividades econômicas são típicas de Estado, de elevada responsabilidade e que exigem alta especialização e permanente capacitação.
O intento de, por decreto, delegar a outros entes federados, atribuições que, por lei, devem ser realizadas pela União, é um grave e inaceitável precedente.
Os servidores públicos estaduais e municipais não podem servir de instrumento para possibilitar que logre êxito essa medida antidemocrática do governo federal, sob pena de contribuir para acentuar ainda mais a captura do Estado pelo poder econômico.
Os agentes econômicos são os maiores interessados na fragilização das Instituições de Estado encarregadas das atividades públicas de regulação e fiscalização das atividades econômicas, o que se dá pela via da desmoralização dos agentes públicos e da precarização de suas condições de vida e trabalho.
Quanto mais vulnerável o agente público portador de atribuições legais de regulação e fiscalização das atividades econômicas estiver à captura, à cooptação e ao assédio por parte do poder econômico, mais prejudicada estará a coletividade.
A sociedade brasileira só tem a perder com a fragilização do serviço público.
Não bastasse a União perpetrar, desde 1997, uma brutal asfixia financeira aos Estados, por meio de um fatídico programa de ajuste fiscal que impõe a estes encargos financeiros escorchantes (com juros de 6% a 9% ao ano, além de atualização monetária), agora vem a União querer transferir a Estados e Municípios atividades públicas que a ela – União - cabem, por intermédio de seu quadro funcional, qualificado tecnicamente e habilitado, por lei, para realizá-las.
E tudo para fugir à responsabilidade de solucionar democraticamente o impasse com os servidores federais em greve.
Essa medida do governo federal, além de não servir a propósitos nobres, cria mais confusão e reduz ainda mais o juízo que a sociedade faz da classe política. Estados e Municípios mereciam mais consideração da União.
Penso que se a União não tem interesse em ajudar Estados e Municípios a resolver os seus problemas, pelo menos que não nos traga outros, pois já nos bastam os sacrifícios que nos são impostos pelo ajuste fiscal da União, que os Estados foram obrigados a “aderir” e que provoca dramática drenagem de recursos dos cofres estaduais para os banqueiros, recursos que faltam para atender as mais elementares necessidades da coletividade, como saúde, educação e segurança.
A medida fura-greve do governo federal é odiosa, mesquinha, velhaca e escapista.
(Artigo publicado no jornal Diário do Pará de 29 de julho. Charles Alcantara é auditor fiscal do Estado e presidente do Sindicato dos Servidores do Fisco Estadual do Pará (Sindifisco-PA).
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