Jornalismo sem diploma
I
Esse debate em torno da exigência do diploma para o exercício da profissão de jornalista não é novo. Já existia, há 27 anos, quando comecei a trabalhar em jornal. No entanto, ao longo dessas quase três décadas, não me lembro de perseguição tão implacável aos jornalistas sem diploma.
O objetivo, aparentemente nobre - a regulamentação profissional – catalisa importantes apoios sociais. Mas, como quase tudo na vida, por trás dessa nobreza aparente, há interesses bem mais comezinhos.
Ninguém imagine que essa discussão é baseada nos interesses societários. Para garantir a qualidade e a democratização da informação; pessoas mais bem preparadas para servir ao conjunto dos cidadãos; para tratar a informação como a condição sine qua non que é às transformações sociais – e não como um sabonete, um rolo de papel higiênico, uma “mercadoria” qualquer, ou, até, como mero “apêndice” da publicidade.
Tudo conversa fiada, lári-lári, para quem não conhece os meandros dessa categoria despolitizada, corporativista e arrogante – mas, na qual, eu, apesar das bicudas, orgulhosamente me incluo, mesmo que sem-diploma...
O que se quer, no fundo, é apenas e tão somente garantir mercado de trabalho. Porque jornalista, com ou sem diploma é, em geral, um profissional aprisionado no próprio umbigo, que sequer tem noção do próprio papel social.
Para começar, acredita piamente nesse tatibitati da “imparcialidade” jornalística. Sequer participa politicamente, exercita a cidadania, simplesmente porque se considera “apolítico”. Aliás, não consegue nem “se ver” como trabalhador. E nem consegue compreender que essa “visão imparcial” é ideologicamente determinada. E que a informação nunca foi, é ou será “inocente”: sempre servirá aos interesses das forças em disputa, no âmago da sociedade. E que o importante é termos perfeita consciência do lado em que estamos.
Eis a categoria dos jornalistas, nua e crua, como era há 27 anos e como é, ainda hoje. Há 27 anos, lembro que alguns de nós, no sindicato, bem poucos é verdade, já discutíamos isso. E não me consta que a despolitização dominante tenha se reduzido sensivelmente. Muito pelo contrário.
II
Na verdade, a questão central desse debate é crucial para a sociedade, embora nem apareça nos monólogos apologéticos que predominam nos espaços corporativos.
A questão central é: pode um bem social como a informação – e a formatação dela, o tratamento que se lhe dê - transformar-se em “propriedade”, em monopólio de uma categoria profissional?
Informação é direito básico de Cidadania. É propriedade de todos e de cada um de nós. E todos, temos, sim, o direito de fazer uso dela, na luta pelos nossos ideais.
Se só jornalistas com diploma podem produzir notícia – de impressos, rádios, tvs – como ficam o cidadão e o conjunto de cidadãos desprovidos de meios para pagar esses profissionais?
Como ficam os sindicatos, as associações de bairro, as rádios comunitárias? Como ficam até mesmo as entidades religiosas? E como fica o fumado do cidadão que, simplesmente, quer repartir aquilo que pensa, a sua opinião, com os vizinhos, os amigos, os familiares, através de um informativo, um boletim?
E como ficam os governos, as prefeituras em cidades distantes. Quer dizer: onde não houver jornalista diplomado, não pode haver nem mesmo a mera prestação de contas à sociedade, na forma de uma publicação ou de um programa de rádio ou tv? Ou de uma assessoria de comunicação que pense formas alternativas e sistemáticas de informação aos cidadãos, apesar da falta de veículos tradicionais?
Mas será que não se percebe logo que esse é um atentado despudorado até mesmo a direitos constitucionalmente garantidos?
E qual será o próximo passo? A exigência da assinatura de um jornalista nos sites e blogs – e ao que me lembre já se tentou algo assim, recentemente, não é mesmo?
Mas, desde quando, uma sociedade inteira, milhões de pessoas, pode ficar refém de alguns milhares?
Mal comparando, isso parece a questão dos camelôs. Mil e quinhentos, três mil, sei lá quantos, tomaram as ruas, as vias públicas de Belém, porque precisam sobreviver. E, para 1,5 milhão de cidadãos, lá se foi o direito de ir e vir...
III
Na defesa do diploma de jornalista não faltam argumentos falaciosos
O mais recorrente deles – e novamente nobre – é o da defesa de melhor remuneração para esses profissionais.
É claro que ninguém é contrário à melhoria salarial dos trabalhadores. Mas, novamente, é preciso passar a lupa na argumentação.
Não é verdade que os “sem-diploma” depreciam os salários da categoria. Pelo contrário: muitos jornalistas que nunca passaram nem perto de um curso de comunicação estão entre os mais bem pagos e respeitados do mercado.
Na verdade, o que deprecia o valor da mão de obra são as levas e levas de jornalistas despreparados que, todos os anos, são jogados no mercado - justamente pelos cursos de comunicação, que, em geral, têm qualidade para lá de sofrível.
E como a notícia, a informação, virou apêndice da publicidade, essa mão de obra, abundante, desqualificada e barata, serve muitíssimo bem ao cotidiano das empresas jornalísticas.
Afinal, com qualquer dois neurônios se produz um “calhau” - que vai tapar o buraco na página de um cansado e mal pago editor...
IV
Outro argumento dos “com-diploma” – que, aliás, se incluem na elite dos 7% de brasileiros que concluíram um curso superior; mas isso eles não dizem, é claro – chega a ser risível.
Decomposto, espremido, vai dar no seguinte: a ética profissional é decorrência do diploma. Ou, o diploma é condição sine qua non, necessária, da ética profissional.
E por que é que eu digo que isso é até risível? Porque existe aqui, claramente, uma confusão conceitual.
Ética e conhecimento são coisas bem diferentes. Eu até posso ser ético por conhecer. Ou até conhecer, para que isso me ajude a ser mais ético – forcemos a barra, assim. Mas, sinceramente, onde é que está a relação de necessidade? Ou, até, a “essência” em que essas coisas se misturam, para se tornar uma só?
Se eu tomar como verdadeiro esse raciocínio - e radicalizá-lo - chegarei, forçosamente, à conclusão de que éticos só podem ser os 7% de brasileiros que concluíram uma universidade, ou seja, que se apropriaram do conhecimento formal.
E nem esses 7% de brasileiros, mas, possivelmente, apenas o 0000000000,1% que concluiu um curso de Filosofia, estudou exaustivamente a ética e, em decorrência disso, é, necessariamente, ético.
Quer dizer: do lado oposto, terei 93% de brasileiros, a massa empobrecida mantida na ignorância, que, agora, para além de não ter condições mínimas de sobreviver dignamente, também nem pode ter um comportamento ético, porque desconhece o que isso significa...
Ou seja: deve ter muito canalhocrata, com anel de doutor, rindo à beça desse raciocínio...
V
Mas os “com-diploma” também argumentam o seguinte: novamente movidos pelas mais nobres intenções, dizem que a falta de regulamentação profissional, via diploma específico, interessa aos patrões.
Ora, dizem eles, sem a exigência do diploma, os patrões vão poder contratar quem bem entenderem para as redações – o amigo, a mulher, a mãe, o filho, cachorro, periquito, papagaio...
E, novamente, esse “argumento” terrorista, de tão triste, chega a ser risível.
Mas, desde quando, essa ou aquela exigência legal é impeditivo, no Brasil, para empresário contratar quem quer que seja?
Tenho 27 anos de profissão – mais da metade da minha vida. E não me lembro de uma única ocasião em que isso tenha se configurado.
E novamente essa “crença”, essa mera opinião, advém da prepotência, da arrogância dos jornalistas, que, ao invés, de se reconhecerem como trabalhadores, acreditam, piamente, que detêm, isoladamente, espécie de poder.
Poder de trabalhador não advém de um pedaço de papel, mesmo que seja do Direito – que, aliás, é conseqüência, não causa. Poder de trabalhador, qualquer que seja a categoria, ou conjunto delas, advém é da união, das lutas coletivas.
Ademais, para que, meu Deus do céu!, o dono de uma empresa jornalística vai querer colocar numa redação, nessa fábrica de loucos mal pagos, os seus parentes? Só se for para se livrar deles...
Vai é colocá-los em situações melhores, em outras empresas, ou em assessorias.
E desde quando, os jornalistas, temos esse controle tão extraordinário do que é produzido nas redações, que seja necessário, aos patrões, colocar lá “agentes infiltrados” consangüíneos?
E desde quando o simples fato de ser jornalista diplomado torna alguém sublime, imune a qualquer “influência”?
A conclusão necessária de tal premissa é que, no dia em que todos os jornalistas brasileiros formos especificamente diplomados, teremos não mais os jornalões que temos. Mas, milhares, milhões de Pravdas, a defender, incessantemente, os interesses do proletariado...
VI
É claro que não estou aqui defendendo que a porcaria dessa profissão vire um bordel.
E digo porcaria porque, se pudesse voltar no tempo, jamais teria entrado numa redação de jornal. Sei que tenho talento para isso. Mas, sinceramente, não é isso, exatamente, o que eu gostaria de ter feito na vida.
Jornalismo é desgastante, cansativo. E, de certa forma, vai desconstruindo, aos poucos, toda a capacidade de crer.
O bom jornalista nunca será “crente”. Sempre se perguntará o que está por trás da declaração do entrevistado. O que ele não diz, porque não quer ou não pode dizer.
E vai, também, considerar, sempre, o contexto do dito e do não-dito, na hora de escrever. Para não servir de inocente útil, nas mãos de quem quer que seja.
Vai considerar, em primeiro lugar, os interesses da sociedade em que vive, e não os seus ou os do entrevistado.
Terá sempre em mente que tem um compromisso com o seu tempo, que é a base de um tempo que está por vir.
Vai aprender a cultivar a curiosidade de uma criança. A perguntar e perguntar e perguntar, mesmo aquilo cujas respostas parecem óbvias. Porque, do aparentemente óbvio, advém, muitas vezes, o inusitado.
Vai aprender a lutar pelo furo, pela notícia exclusiva, a par da instantaneidade dos meios de comunicação.
E vai sofrer, que nem cachorro de pobre, até o dia seguinte, para ter a certeza de que a notícia que trouxe foi exclusiva de fato. Ou, ao menos, que ninguém o furou.
E vai suar para fazer o melhor, sempre o melhor, para o leitor. E vai gastar horas a fio, desgastando a vista, para ler, sofregamente, sobre tudo, para nunca ser confundido pela ignorância, na hora de tomar como verdadeira uma informação ou de a escrever. E para que o leitor, mesmo que com parcas condições de leitura, consiga compreender o que ali foi informado.
Contra a orientação dos editores e até dos patrões – que pretendem a notícia cada vez mais leve, como se servisse, apenas, para a sala de espera de um consultório – vai escavar a fundo a informação.
Porque há que se deter a informação – mesmo que não seja de pronto utilizada. Para que ela ajude a pensar sobre outras informações que surgirão lá na frente. E porque ela pode ensejar o furo de amanhã.
Jornalismo não é certeza – nunca será. É dúvida permanente. Metodicamente cultivada.
VII
Quando digo que não estou defendendo que essa profissão se transforme num bordel é porque também defendo alguma forma de regulamentação.
Creio, sinceramente, que os jornalistas poderiam sair de qualquer curso da área das Ciências Humanas. E que a técnica, o específico, poderia ser uma complementação.
Assim, teríamos – e essa é uma esperança – jornalistas mais aptos a compreender a sociedade em que vivem e a agir sobre a realidade.
Porque hoje o que ocorre é uma inversão: a técnica adquiriu uma primazia que não pode ter, no caso específico do jornalismo, sobre conhecimentos que permitem, ao menos, uma mundivisão mais límpida.
Tais instrumentos, que existem em profusão na Sociologia, na Filosofia, na História, no Direito, na Economia, rareiam nos cursos de Comunicação Social. São tratados como adendo, quando, em verdade, são o principal.
Mas, mesmo nesse tipo de regulamentação, seria preciso excluir algumas áreas.
A comunicação popular (sindicatos, comunidades) por exemplo, deveria ser excluída de qualquer tipo de exigência profissional. Até para permitir que os cidadãos possam construir, coletivamente – e com os meios que efetivamente dispõem – as linguagens e formatos eficazes.
É claro que os jornalistas poderiam ajudar nisso. Mas isso seria uma possibilidade. E não condição para a existência disso.
Também teriam de ficar de fora sites, blogs de caráter pessoal. Porque isso tem a ver com a liberdade de expressão.
E, sobretudo, deveríamos, os jornalistas, acabar com essa história de monopólio das assessorias de comunicação. E embora isso pareça, simples interesse pessoal, a coisa é bem mais profunda.
Na verdade, as assessorias de comunicação não deveriam ser ocupadas por jornalistas, porque, simplesmente, não fazem jornalismo.
Sei que é um campo de trabalho mais bem remunerado que as redações e que se tem ampliado muito. Mas, tais espaços, para ser justa, deveriam ser ocupados por relações públicas, publicitários ou profissionais de marketing. Jamais por jornalistas.
Quero que aqui, sem hipocrisia, algum jornalista afirme que já fez jornalismo em assessoria de comunicação.
Vamos, agora, deixando o corporativismo de lado, responder a seguinte pergunta: quem, dentre nós, divulgou alguma informação que fosse contrária aos interesses do assessorado?
É claro que os mais tarimbados sabem bem que, às vezes, é melhor divulgar uma inevitável notícia ruim, para manter as rédeas, o controle sobre o impacto social disso.
Mas, isso é jornalismo?
É certo que há cada vez mais jornalistas e os veículos de comunicação vão se tornando cada mais incapazes de assimilar essa massa profissional.
Mas, isso nos dá o direito de avançar sobre áreas que não nos pertencem, e mais que isso, que são rigorosamente incompatíveis com o jornalismo?
Nessa área, no máximo, poderíamos trabalhar na elaboração de projetos, para ajudar na identificação de linguagens e formatos.
Mas, jamais, assumindo o comando disso.
Agora, me dêem licença que vou tomar uma. FUUUUIIIIII!
P.S.: Sim, eu vou fazer o tal do curso de comunicação que vocês tanto defendem. Depois de 27 anos, não tenho alternativa, não é mesmo? Só estou tentando arranjar dinheiro para pagar uma faculdade particular, já que o meu joelho não me permite encarar o guamazão. Vou me submeter, porque também não quero abrir uma guerra contra a categoria à qual pertenço. Mesmo não concordando, me submeto, democraticamente, às decisões coletivas. Mas, creio, sinceramente, que temos de ampliar e aprofundar esse debate. Afinal, para além dos interesses da categoria, é preciso olhar os interesses da sociedade como um todo.