É incrível, mas verdadeiro: a reforma do Parque do
Utinga, que foi inaugurada em março do ano passado pelo ex-governador Simão
Jatene, pode acabar custando quase R$ 87 milhões. Segundo os balanços gerais do
Estado (BGEs), os documentos que registram todas as despesas do Governo, a obra
consumiu, entre 2012 e 2017, mais de R$ 63,943 milhões, em valores atualizados
pelo IPCA-E de dezembro último.
No entanto, a construtora Paulitec, que a executou,
ainda cobra do Governo R$ 23 milhões, por serviços decorrentes de alterações no
projeto original da obra, realizadas pela Secretaria Estadual de Cultura
(Secult), na época comandada pelo arquiteto Paulo Chaves. Além da Paulitec,
também participou da reforma um consórcio liderado pela Sanevias, que
fiscalizou e gerenciou os serviços.
Os R$ 87 milhões que a reforma do Utinga pode acabar
custando ao contribuinte dariam para construir 14 Unidades de Pronto
Atendimento (UPAs) como a do bairro da Terra Firme, em Belém, que tem 1.500
metros quadrados, capacidade para atender até 400 pessoas por dia, custou cerca
de R$ 6 milhões e também foi inaugurada no ano passado.
Já a reforma do Utinga se resumiu à construção de um
pórtico, um estacionamento e duas áreas cobertas chamadas de Acolhimento
(recepção), além da drenagem e pavimentação dos 3,3 quilômetros da principal via
de acesso ao parque.
Em documentos oficiais do próprio ex-governador Simão Jatene, o custo médio
de pavimentação de uma rodovia ficava, na época, em R$ 1,1 milhão por km. Isso
significa que mesmo que a estrada do Utinga tenha custado o triplo por km, a
conta ficaria em menos de R$ 11 milhões.
Em documentos
entregues por uma fonte ao jornal Diário do Pará, o estacionamento teria saído
por R$ 6,7 milhões, e o pórtico por R$ 2,8 milhões. A soma, por cima, fica em
R$ 20,5 milhões.
Então, onde é
que foi parar o restante desse dinheiro?
Quanto,
afinal, teriam custado as duas áreas cobertas chamadas de “Acolhimento”?
Só o contrato
da Paulitec, para a pavimentação da estrada e essas 4 construções, possuía um
valor inicial de R$ 36 milhões, mas teria ido parar em R$ 42 milhões, por força
de aditivos.
Como atesta o
portal estadual da Transparência, ela já recebeu mais de R$ 37,387 milhões, em
valores atualizados.
Assim, se esses
R$ 23 milhões que cobra do Governo forem pagos, ela receberá, ao todo, R$ 60,387
milhões, ou quase 68% acima do valor inicial do contrato.
E mais: em
depoimento à Polícia Civil, que investiga possíveis irregularidades naquela
reforma, o próprio Paulo Chaves admitiu que a Secult não pagou parte do
dinheiro que a Paulitec reclama porque ela não comprovou o emprego de tais
recursos.
Funcionários
da Secult que também depuseram na polícia admitiram modificações em projetos de
maneira “informal”, através de ofícios ou e-mails pessoais, e não
institucionais.
Segundo eles,
não existem nem mesmo atas de reuniões realizadas entre a secretaria e a
empresa, para discutir o andamento dos serviços.
No inquérito,
consta, ainda, que mesmo sem o pagamento de um aditivo pela Secult, que não
aceitou a justificativa e comprovação de despesas, a Paulitec continuou a
realizar serviços “com a anuência tácita” daquela secretaria.
Perdas de 46 mil quilos de aço e
milhões em água, luz e biscoitos
Em dezembro
do ano passado, o Diário do Pará publicou uma série de reportagens, assinadas
por mim, mostrando os indícios de irregularidades naquela reforma.
Segundo uma
fonte, que entregou ao jornal vários documentos e gravações de áudio, o
superfaturamento chegaria a R$ 12 milhões, devido a turbinagens, principalmente,
no dinheiro pago por serviços administrativos e nas quantidades de aço e aterro
que teriam sido usadas nas obras, muitas vezes em decorrência de alterações do
projeto original.
Os “devaneios” de Paulo Chaves teriam provocado a
perda de 46.581 quilos de aço, na construção do chamado “Acolhimento”.
Além disso, a Paulitec teria faturado mais de R$ 360
mil por mês apenas para o pagamento de pessoal e manutenção do canteiro de
obras, “o que é, basicamente, água, luz, biscoito e material de limpeza, porque
até a vigilância não entra nesse cálculo”, disse a fonte.
De acordo com a documentação, o valor pago pela Secult
à Paulitec por “Serviços Permanentes e Iniciais”, que é justamente a
administração das obras, saltou, por força de aditivos, de R$ 4,5 milhões para
mais de R$ 9,7 milhões.
Outra irregularidade seria a quantidade de aterro alegadamente
usada nas obras, e que teria atingido uns 20 mil metros cúbicos acima do
previsto pelos estudos técnicos, inclusive as sondagens do solo.
R$ 2 milhões em “floresta dourada”,
com pés de açaí a R$ 250,00
Segundo a
documentação, o superfaturamento teria atingido até mesmo as mudas de árvores
nativas, compradas para o paisagismo do parque, que acabaram alcançando valores
impressionantes.
Um simples pé
de açaí teria custado R$ 244,90 – um produto comprado pela Universidade de
Lavras, no distante estado de Minas Gerais, a R$ 34,95, em uma licitação de
2017, e que era vendido a apenas R$ 5,00 em uma loja de Marituba, em dezembro
do ano passado.
O mesmo aconteceu com as seringueiras (R$ 354,73 o
pé), ingazeiros (R$ 463,63), cacaueiros (R$ 183,58), com a castanha do Pará (R$
152,46), a pupunheira (R$ 247,97) e tantas outras.
Um dos casos mais espantosos foi o do abricó de
macaco, que também é originário da Amazônia, cuja muda chegou a custar R$
899,29, contra os R$ 16,66 pagos pela Universidade de Lavras (MG), no Pregão
0057/2017.
No total, a Secult teria gastado mais de R$ 2 milhões
na Urbanização e Paisagismo do Utinga.
Áudios documentam maquiagem de
aditivos e possível fraude na certificação de madeira
No entanto, ainda
mais bombásticas foram as gravações de áudio entregues pela fonte. Tanto que a
publicação delas, pelo jornal, levou à exoneração de Paulo Chaves, em 17 de
dezembro.
Elas
documentaram duas reuniões, em 12 e 19 de julho de 2016, entre representantes
da Paulitec, Sanevias e Secult.
Em uma delas,
Paulo Chaves chega a sugerir que o empresário José Levy, da Paulitec, fraude a
certificação da madeira que seria comprada para a construção de uma cerca, que
não estava no projeto original.
“Por
que não faz como o Bosco Moisés fazia, quando nós éramos sócios da Papa Jimmy?
Comprava uma garrafa de uísque no supermercado, tirava o selo e passava pra
outra” – diz o então secretário, ao ser informado por Levy que cada estaca de
acapu custaria R$ 15,00 “sem nota, sem certificado”, ou R$ 30,00 “com
certificado, guia florestal”.
(A Papa Jimmy foi uma boate da Belém da década de 1970. Carnavalesco e ex-deputado estadual, Bosco Moisés, citado por Paulo Chaves como ex-sócio dele, era suspeito de ser um dos chefões do jogo do bicho, no Pará. Bosco morreu em 2013).
Outras conversas mostram Paulo Chaves e Levy tentando convencer técnicos da Secult a autorizarem acréscimos de serviços em favor da Paulitec, e até a maquiarem um aditivo de preço cuja composição seria ilegal, por destinar muito dinheiro a serviços administrativos.
“O que eu acho é que se pode é diminuir a aparência das coisas. Em vez de ser 20% de administração, ser 16, ser 17. Colocar noutro item, fazer um jogo”, sugere o então secretário.
Nos áudios, Paulo Chaves também chama de “merdas” os integrantes do Tribunal de Contas do Estado (TCE) e culpa o então governador Simão Jatene “e o governo como um todo” pela lentidão da obra, que deveria demorar sete meses, mas acabou se arrastando por quase quatro anos.
Tão ou mais impressionante, porém, é a proximidade entre o então secretário e o empresário José Levy, revelada pelas gravações.
Na reunião de 19/07/2016, por exemplo, Paulo Chaves diz estar “muito triste” com as dificuldades na reforma.
E
Levy, como naquela canção de Roberto Carlos (“Não quero ver você triste”),
consola o então secretário que o contratou.
“Deixa
eu dizer pra você, pra você não ficar tão triste, pra você saber que tem
pessoas que olham por você. Você já viu a gama de serviços que tão sendo
executados que eu não posso medir, e tão sendo executados porque você pediu?”,
diz Levy.
Em
outra ocasião, durante um bate-boca, o empresário afirma, ao se negar a
entregar documentos a um técnico: “As coisas que não são entregues são para
proteger uma pessoa. E essa pessoa se chama Paulo Chaves.
Ouça
os aúdios das reportagens publicadas pelo Diário do Pará:
Sindicância de Jatene
para investigar áudios diz que investigou licitação e que não achou
improbidade.
Em
21 de dezembro do ano passado, no apagar das luzes do Governo Jatene, a
Auditoria Geral do Estado (AGE), a Secult e a Procuradoria Geral do Estado
(PGE) criaram uma comissão de sindicância sobre o caso.
A
AGE e a Secult eram então comandadas por Roberto Amoras, desde pelo menos 2001 homem
de confiança do ex-governador.
Já
a PGE estava sob o comando de Ophir Cavalcante Junior, hoje advogado de Jatene.
Para
a presidência da comissão eles escolheram o consultor jurídico do Estado,
Valdir Mártires Coelho, que tem o mesmo nome de um irmão de Tereza Cativo,
ex-secretária especial de Jatene.
A
portaria que criou a sindicância diz que as investigações seriam
especificamente sobre os áudios e as possíveis irregularidades que registram.
Mas,
no último 13 de março, uma técnica da comissão emitiu um parecer afirmando que
não encontrou indícios de improbidade na licitação da obra, embora esse
processo licitatório não seja citado nas gravações.
Já
a análise das irregularidades documentadas pelos áudios teria ficado prejudicada
devido à não obtenção das degravações com a integralidade das conversas, “que
teriam supostamente ocorrido”.
O
fato é estranho, já que os áudios sempre estiveram disponíveis no Diário do
Pará Online (DOL) e que uma simples perícia de voz comprovaria que as vozes
naquelas conversas são, sim, de Paulo Chaves, José Levy e de funcionários da
Sanevias e da Secult.
Além
disso, em um relatório do inquérito policial, datado de 12 de abril, consta que
a delegada responsável pelo caso requereu a Valdir Mártires Coelho informações
sobre a sindicância e os aditivos contratuais entre a Secult e a Paulitec.
Mas
ele respondeu não possuir um relatório parcial e que a análise de aditivos
fugia da sua esfera de competência, uma vez que a sindicância se restringia “às
mídias veiculadas pela imprensa”, como previsto na portaria que a criou.
Então,
eis aqui um “mistério misterioso”: o que levou, afinal, a comissão a
investigar, como diz que investigou, o processo licitatório da obra?
“100% de irregularidades e 100% ilegal”
Na semana
passada, a AGE divulgou um relatório preliminar de apuração da reforma do
Utinga.
Segundo o
documento, não foram localizados registros de legalização da obra, como é o
caso do Alvará da Prefeitura de Belém e das licenças da Secretaria Estadual de
Meio Ambiente e Sustentabilidade (SEMAS).
Também não há
o “Habite-se” do Corpo de
Bombeiros, que, após uma vistoria, apontou até a reprovação dos serviços, devido
ao descumprimento de várias exigências, entre elas a apresentação do projeto de
combate a incêndio e pânico.
E foram constatadas infiltrações e até buracos
no teto em algumas das estruturas inauguradas há pouco mais de um ano, o que
indica erros ou má qualidade dos serviços.
Segundo um técnico da AGE que pediu para não se
identificar, foram detectadas irregularidades em 100% da amostragem investigada.
“Essa obra está 100% ilegal, ela não passou pela
anuência de nenhum órgão. E em todos os itens da amostragem nós encontramos irregularidades,
o que indica que uma análise minuciosa desse processo vai encontrar muito mais
coisas”, disse ele.
No entanto, as suspeitas de superfaturamento (e
também quanto à origem da madeira usada nas obras) não puderam ser apuradas.
É que a Paulitec se recusa a entregar as notas
fiscais dos materiais e equipamentos que adquiriu, com dinheiro público, para
aquela reforma, sob a justificativa de possível quebra de “sigilo comercial”.
O advogado Clodomir Araújo Junior, que representa a
Paulitec, confirma que ela não entregou as notas fiscais porque “tem toda uma
negociação com fornecedores, sobre as quais tem de manter sigilo”.
Além disso, argumenta, a empresa foi contratada por
preço global, e não por preço unitário, daí não ser obrigada a demonstrar a
despesa que teve em cada item do serviço.
Ele também disse que as irregularidades apontadas
pela AGE são formais, explicáveis e sanáveis e que a empresa possui documentos
comprovando que cumpriu todas as exigências contratuais.
Ainda segundo ele, a documentação em poder da
Paulitec também comprova que todas as alterações do projeto, realizadas pela
Secult e cumpridas pela empresa, foram formalizadas.
O advogado afirmou, ainda, que a Paulitec é credora
do Governo “em mais de R$ 23 milhões” e que os serviços que originaram essa
dívida foram medidos.
No entanto, ele também disse que o inquérito
policial concluiu “que não há indícios de crimes licitatórios ou de improbidade”
na obra, o que não é exatamente verdade.
Quem diz que não houve irregularidades na licitação é
um relatório da Comissão de Sindicância, criada no apagar das luzes do Governo
Jatene, e que apesar de restrita, por força da portaria que a criou, à
investigação dos áudios divulgados pelo Diário do Pará, teria decidido, sabe-se
lá por que, investigar a licitação, como você leu acima.
Já a delegada responsável pelo inquérito policial,
apesar de dizer que “as inconsistências até então detectadas não chegam a
sinalizar possíveis atos de improbidade administrativa”, também afirma, no mesmo
relatório que enviou à Justiça, que ainda aguardava por um relatório da AGE.
Além disso, a delegada também admite (e por escrito),
que não possui conhecimento e estrutura para analisar nem os termos aditivos do
contrato, nem as prestações de contas da Paulitec à Secult (veja no quadrinho
abaixo). E tais documentos são essenciais nessa investigação.
Outro problema é que não se sabe o porquê de não
terem sido convocados a depor, por exemplo, o empresário José Levy e os
funcionários da Sanevias e da Secult, que participaram das reuniões
documentadas pelos áudios, algumas vezes até gritando contra as irregularidades
que Paulo Chaves e Levy tentam leva-los a cometer.
E mais: Paulo Chaves, no depoimento à polícia,
afirma que nem sequer insinuou irregularidades, como a maquiagem de aditivos
ilegais, apesar de a voz dele, que é perfeitamente identificável nos áudios,
comprovar que fez exatamente o que agora nega.
Pergunta-se, novamente: por que não foi realizada uma
perícia de voz?
Além disso, no último 10 de junho, a juíza Haila
Haase Miranda, da 9 Vara Criminal de Belém, decidiu enviar o caso à Justiça
Federal, para que ela se manifeste sobre a quem compete apurar o suposto
superfaturamento da reforma do Utinga, já que a obra contou com verbas do
BNDES, ou seja, federais.
Assim, se a investigação realmente ficar na esfera
federal, onde os tentáculos tucanos sempre foram mais tênues, o placar voltará
ao zero a zero.
Governo
já pagou quase R$ 64 milhões pela reforma do Utinga. Só a Paulitec já recebeu
mais de R$ 37 milhões
Gastos no Utinga
2012
R$
3.104.482,73
2013
R$
11.148.993,29
2014
R$
4.893.907,52
2015
R$
12.992.288,09
2016
R$
26.370.371,77
2017
R$
5.433.436,10
TOTAL: R$ 63.943.479,50
Recebidos
pela Paulitec
2014
R$ 134.821,41
2015
R$ 7.905.946,60
2016
R$ 23.915.705,12
2017
R$ 5.430.667,91
TOTAL:
R$ 37.387.141,04
Confira
você mesmo!
Você mesmo pode conferir os gastos ano a ano no Parque
do Utinga. Veja onde localizar a informação nos balanços gerais do Estado
(BGEs):
Ano 2012 – volume 2, página 257;
Ano 2013 – volume 3, página 265;
Ano 2014 – volume 3, página 274;
Ano 2015 – volume 3, páginas 262/263;
Ano 2016 - volume 3, página 249;
Ano 2017 – volume 3, página 248.
Os balanços podem ser acessados no site da Secretaria
Estadual da Fazenda (Sefa), neste link: http://www.sefa.pa.gov.br/index.php/receitas-despesas/contabilidade-geral/4593-balancos-gerais.
E atenção para a “funcional programática”, um conjunto
de 13 números, que identifica quem, quanto e onde gastou.
De 2012 a 2015, a funcional programática “implantação
do Parque do Utinga” era a 13.391.1340.7454.
Em 2016 e 2017, ela passou a ser a
13.391.1444.7589.
Vale salientar que essas declarações sobre os gastos
naquela reforma são do próprio Governo Jatene.
E que os números do portal da Transparência, sobre os
recursos recebidos pela Paulitec e pelo consórcio liderado pela Sanevias, são
compatíveis com os valores contidos nos BGEs.
-----
A
matéria acima, reproduzida com várias modificações a maior neste blog, foi
publicada no jornal Diário do Pará do último domingo, 23/06.