segunda-feira, 24 de junho de 2019

Paulitec cobra do Governo mais R$ 23 milhões pela reforma do Utinga, que pode acabar custando R$ 87 milhões. Dinheiro reclamado pela empresa fará com que receba quase 70% acima do contrato inicial da obra. R$ 87 milhões do Utinga dariam para construir 14 UPAs como a da Terra Firme, em Belém.





É incrível, mas verdadeiro: a reforma do Parque do Utinga, que foi inaugurada em março do ano passado pelo ex-governador Simão Jatene, pode acabar custando quase R$ 87 milhões. Segundo os balanços gerais do Estado (BGEs), os documentos que registram todas as despesas do Governo, a obra consumiu, entre 2012 e 2017, mais de R$ 63,943 milhões, em valores atualizados pelo IPCA-E de dezembro último. 

No entanto, a construtora Paulitec, que a executou, ainda cobra do Governo R$ 23 milhões, por serviços decorrentes de alterações no projeto original da obra, realizadas pela Secretaria Estadual de Cultura (Secult), na época comandada pelo arquiteto Paulo Chaves. Além da Paulitec, também participou da reforma um consórcio liderado pela Sanevias, que fiscalizou e gerenciou os serviços. 

Os R$ 87 milhões que a reforma do Utinga pode acabar custando ao contribuinte dariam para construir 14 Unidades de Pronto Atendimento (UPAs) como a do bairro da Terra Firme, em Belém, que tem 1.500 metros quadrados, capacidade para atender até 400 pessoas por dia, custou cerca de R$ 6 milhões e também foi inaugurada no ano passado. 

Já a reforma do Utinga se resumiu à construção de um pórtico, um estacionamento e duas áreas cobertas chamadas de Acolhimento (recepção), além da drenagem e pavimentação dos 3,3 quilômetros da principal via de acesso ao parque.  

Em documentos oficiais do próprio ex-governador Simão Jatene, o custo médio de pavimentação de uma rodovia ficava, na época, em R$ 1,1 milhão por km. Isso significa que mesmo que a estrada do Utinga tenha custado o triplo por km, a conta ficaria em menos de R$ 11 milhões. 

Em documentos entregues por uma fonte ao jornal Diário do Pará, o estacionamento teria saído por R$ 6,7 milhões, e o pórtico por R$ 2,8 milhões. A soma, por cima, fica em R$ 20,5 milhões.  

Então, onde é que foi parar o restante desse dinheiro? 

Quanto, afinal, teriam custado as duas áreas cobertas chamadas de “Acolhimento”? 

Só o contrato da Paulitec, para a pavimentação da estrada e essas 4 construções, possuía um valor inicial de R$ 36 milhões, mas teria ido parar em R$ 42 milhões, por força de aditivos. 

Como atesta o portal estadual da Transparência, ela já recebeu mais de R$ 37,387 milhões, em valores atualizados.  

Assim, se esses R$ 23 milhões que cobra do Governo forem pagos, ela receberá, ao todo, R$ 60,387 milhões, ou quase 68% acima do valor inicial do contrato. 

E mais: em depoimento à Polícia Civil, que investiga possíveis irregularidades naquela reforma, o próprio Paulo Chaves admitiu que a Secult não pagou parte do dinheiro que a Paulitec reclama porque ela não comprovou o emprego de tais recursos.  

Funcionários da Secult que também depuseram na polícia admitiram modificações em projetos de maneira “informal”, através de ofícios ou e-mails pessoais, e não institucionais. 

Segundo eles, não existem nem mesmo atas de reuniões realizadas entre a secretaria e a empresa, para discutir o andamento dos serviços.  

No inquérito, consta, ainda, que mesmo sem o pagamento de um aditivo pela Secult, que não aceitou a justificativa e comprovação de despesas, a Paulitec continuou a realizar serviços “com a anuência tácita” daquela secretaria. 


Perdas de 46 mil quilos de aço e milhões em água, luz e biscoitos 

Em dezembro do ano passado, o Diário do Pará publicou uma série de reportagens, assinadas por mim, mostrando os indícios de irregularidades naquela reforma. 

Segundo uma fonte, que entregou ao jornal vários documentos e gravações de áudio, o superfaturamento chegaria a R$ 12 milhões, devido a turbinagens, principalmente, no dinheiro pago por serviços administrativos e nas quantidades de aço e aterro que teriam sido usadas nas obras, muitas vezes em decorrência de alterações do projeto original.  

Os “devaneios” de Paulo Chaves teriam provocado a perda de 46.581 quilos de aço, na construção do chamado “Acolhimento”. 

Além disso, a Paulitec teria faturado mais de R$ 360 mil por mês apenas para o pagamento de pessoal e manutenção do canteiro de obras, “o que é, basicamente, água, luz, biscoito e material de limpeza, porque até a vigilância não entra nesse cálculo”, disse a fonte.  

De acordo com a documentação, o valor pago pela Secult à Paulitec por “Serviços Permanentes e Iniciais”, que é justamente a administração das obras, saltou, por força de aditivos, de R$ 4,5 milhões para mais de R$ 9,7 milhões. 

Outra irregularidade seria a quantidade de aterro alegadamente usada nas obras, e que teria atingido uns 20 mil metros cúbicos acima do previsto pelos estudos técnicos, inclusive as sondagens do solo.  

R$ 2 milhões em “floresta dourada”, com pés de açaí a R$ 250,00 

Segundo a documentação, o superfaturamento teria atingido até mesmo as mudas de árvores nativas, compradas para o paisagismo do parque, que acabaram alcançando valores impressionantes.  

Um simples pé de açaí teria custado R$ 244,90 – um produto comprado pela Universidade de Lavras, no distante estado de Minas Gerais, a R$ 34,95, em uma licitação de 2017, e que era vendido a apenas R$ 5,00 em uma loja de Marituba, em dezembro do ano passado. 

O mesmo aconteceu com as seringueiras (R$ 354,73 o pé), ingazeiros (R$ 463,63), cacaueiros (R$ 183,58), com a castanha do Pará (R$ 152,46), a pupunheira (R$ 247,97) e tantas outras.  

Um dos casos mais espantosos foi o do abricó de macaco, que também é originário da Amazônia, cuja muda chegou a custar R$ 899,29, contra os R$ 16,66 pagos pela Universidade de Lavras (MG), no Pregão 0057/2017. 

No total, a Secult teria gastado mais de R$ 2 milhões na Urbanização e Paisagismo do Utinga.  

Áudios documentam maquiagem de aditivos e possível fraude na certificação de madeira 

No entanto, ainda mais bombásticas foram as gravações de áudio entregues pela fonte. Tanto que a publicação delas, pelo jornal, levou à exoneração de Paulo Chaves, em 17 de dezembro.  

Elas documentaram duas reuniões, em 12 e 19 de julho de 2016, entre representantes da Paulitec, Sanevias e Secult. 

Em uma delas, Paulo Chaves chega a sugerir que o empresário José Levy, da Paulitec, fraude a certificação da madeira que seria comprada para a construção de uma cerca, que não estava no projeto original.  

“Por que não faz como o Bosco Moisés fazia, quando nós éramos sócios da Papa Jimmy? Comprava uma garrafa de uísque no supermercado, tirava o selo e passava pra outra” – diz o então secretário, ao ser informado por Levy que cada estaca de acapu custaria R$ 15,00 “sem nota, sem certificado”, ou R$ 30,00 “com certificado, guia florestal”.  
 
(A Papa Jimmy foi uma boate da Belém da década de 1970. Carnavalesco e ex-deputado estadual, Bosco Moisés, citado por Paulo Chaves como ex-sócio dele, era suspeito de ser um dos chefões do jogo do bicho, no Pará. Bosco morreu em 2013). 

Outras conversas mostram Paulo Chaves e Levy tentando convencer técnicos da Secult a autorizarem acréscimos de serviços em favor da Paulitec, e até a maquiarem um aditivo de preço cuja composição seria ilegal, por destinar muito dinheiro a serviços administrativos.  

“O que eu acho é que se pode é diminuir a aparência das coisas. Em vez de ser 20% de administração, ser 16, ser 17. Colocar noutro item, fazer um jogo”, sugere o então secretário.  

Nos áudios, Paulo Chaves também chama de “merdas” os integrantes do Tribunal de Contas do Estado (TCE) e culpa o então governador Simão Jatene “e o governo como um todo” pela lentidão da obra, que deveria demorar sete meses, mas acabou se arrastando por quase quatro anos.  

Tão ou mais impressionante, porém, é a proximidade entre o então secretário e o empresário José Levy, revelada pelas gravações.  

Na reunião de 19/07/2016, por exemplo, Paulo Chaves diz estar “muito triste” com as dificuldades na reforma.
E Levy, como naquela canção de Roberto Carlos (“Não quero ver você triste”), consola o então secretário que o contratou. 

“Deixa eu dizer pra você, pra você não ficar tão triste, pra você saber que tem pessoas que olham por você. Você já viu a gama de serviços que tão sendo executados que eu não posso medir, e tão sendo executados porque você pediu?”, diz Levy.

Em outra ocasião, durante um bate-boca, o empresário afirma, ao se negar a entregar documentos a um técnico: “As coisas que não são entregues são para proteger uma pessoa. E essa pessoa se chama Paulo Chaves.

Ouça os aúdios das reportagens publicadas pelo Diário do Pará: 


Sindicância de Jatene para investigar áudios diz que investigou licitação e que não achou improbidade. 

Em 21 de dezembro do ano passado, no apagar das luzes do Governo Jatene, a Auditoria Geral do Estado (AGE), a Secult e a Procuradoria Geral do Estado (PGE) criaram uma comissão de sindicância sobre o caso. 

A AGE e a Secult eram então comandadas por Roberto Amoras, desde pelo menos 2001 homem de confiança do ex-governador.  

Já a PGE estava sob o comando de Ophir Cavalcante Junior, hoje advogado de Jatene. 

Para a presidência da comissão eles escolheram o consultor jurídico do Estado, Valdir Mártires Coelho, que tem o mesmo nome de um irmão de Tereza Cativo, ex-secretária especial de Jatene.  

A portaria que criou a sindicância diz que as investigações seriam especificamente sobre os áudios e as possíveis irregularidades que registram. 

Mas, no último 13 de março, uma técnica da comissão emitiu um parecer afirmando que não encontrou indícios de improbidade na licitação da obra, embora esse processo licitatório não seja citado nas gravações.  

Já a análise das irregularidades documentadas pelos áudios teria ficado prejudicada devido à não obtenção das degravações com a integralidade das conversas, “que teriam supostamente ocorrido”. 

O fato é estranho, já que os áudios sempre estiveram disponíveis no Diário do Pará Online (DOL) e que uma simples perícia de voz comprovaria que as vozes naquelas conversas são, sim, de Paulo Chaves, José Levy e de funcionários da Sanevias e da Secult.  

Além disso, em um relatório do inquérito policial, datado de 12 de abril, consta que a delegada responsável pelo caso requereu a Valdir Mártires Coelho informações sobre a sindicância e os aditivos contratuais entre a Secult e a Paulitec. 

Mas ele respondeu não possuir um relatório parcial e que a análise de aditivos fugia da sua esfera de competência, uma vez que a sindicância se restringia “às mídias veiculadas pela imprensa”, como previsto na portaria que a criou.  

Então, eis aqui um “mistério misterioso”: o que levou, afinal, a comissão a investigar, como diz que investigou, o processo licitatório da obra? 

“100% de irregularidades e 100% ilegal” 

Na semana passada, a AGE divulgou um relatório preliminar de apuração da reforma do Utinga. 

Segundo o documento, não foram localizados registros de legalização da obra, como é o caso do Alvará da Prefeitura de Belém e das licenças da Secretaria Estadual de Meio Ambiente e Sustentabilidade (SEMAS).  

Também não há o “Habite-se” do Corpo de Bombeiros, que, após uma vistoria, apontou até a reprovação dos serviços, devido ao descumprimento de várias exigências, entre elas a apresentação do projeto de combate a incêndio e pânico. 

E foram constatadas infiltrações e até buracos no teto em algumas das estruturas inauguradas há pouco mais de um ano, o que indica erros ou má qualidade dos serviços. 

Segundo um técnico da AGE que pediu para não se identificar, foram detectadas irregularidades em 100% da amostragem investigada. 

“Essa obra está 100% ilegal, ela não passou pela anuência de nenhum órgão. E em todos os itens da amostragem nós encontramos irregularidades, o que indica que uma análise minuciosa desse processo vai encontrar muito mais coisas”, disse ele.  

No entanto, as suspeitas de superfaturamento (e também quanto à origem da madeira usada nas obras) não puderam ser apuradas. 

É que a Paulitec se recusa a entregar as notas fiscais dos materiais e equipamentos que adquiriu, com dinheiro público, para aquela reforma, sob a justificativa de possível quebra de “sigilo comercial”.  

O advogado Clodomir Araújo Junior, que representa a Paulitec, confirma que ela não entregou as notas fiscais porque “tem toda uma negociação com fornecedores, sobre as quais tem de manter sigilo”. 

Além disso, argumenta, a empresa foi contratada por preço global, e não por preço unitário, daí não ser obrigada a demonstrar a despesa que teve em cada item do serviço.  

Ele também disse que as irregularidades apontadas pela AGE são formais, explicáveis e sanáveis e que a empresa possui documentos comprovando que cumpriu todas as exigências contratuais. 

Ainda segundo ele, a documentação em poder da Paulitec também comprova que todas as alterações do projeto, realizadas pela Secult e cumpridas pela empresa, foram formalizadas. 

O advogado afirmou, ainda, que a Paulitec é credora do Governo “em mais de R$ 23 milhões” e que os serviços que originaram essa dívida foram medidos. 

No entanto, ele também disse que o inquérito policial concluiu “que não há indícios de crimes licitatórios ou de improbidade” na obra, o que não é exatamente verdade.  

Quem diz que não houve irregularidades na licitação é um relatório da Comissão de Sindicância, criada no apagar das luzes do Governo Jatene, e que apesar de restrita, por força da portaria que a criou, à investigação dos áudios divulgados pelo Diário do Pará, teria decidido, sabe-se lá por que, investigar a licitação, como você leu acima. 

Já a delegada responsável pelo inquérito policial, apesar de dizer que “as inconsistências até então detectadas não chegam a sinalizar possíveis atos de improbidade administrativa”, também afirma, no mesmo relatório que enviou à Justiça, que ainda aguardava por um relatório da AGE.  

Além disso, a delegada também admite (e por escrito), que não possui conhecimento e estrutura para analisar nem os termos aditivos do contrato, nem as prestações de contas da Paulitec à Secult (veja no quadrinho abaixo). E tais documentos são essenciais nessa investigação. 



Outro problema é que não se sabe o porquê de não terem sido convocados a depor, por exemplo, o empresário José Levy e os funcionários da Sanevias e da Secult, que participaram das reuniões documentadas pelos áudios, algumas vezes até gritando contra as irregularidades que Paulo Chaves e Levy tentam leva-los a cometer.  

E mais: Paulo Chaves, no depoimento à polícia, afirma que nem sequer insinuou irregularidades, como a maquiagem de aditivos ilegais, apesar de a voz dele, que é perfeitamente identificável nos áudios, comprovar que fez exatamente o que agora nega. 

Pergunta-se, novamente: por que não foi realizada uma perícia de voz? 

Além disso, no último 10 de junho, a juíza Haila Haase Miranda, da 9 Vara Criminal de Belém, decidiu enviar o caso à Justiça Federal, para que ela se manifeste sobre a quem compete apurar o suposto superfaturamento da reforma do Utinga, já que a obra contou com verbas do BNDES, ou seja, federais. 

Assim, se a investigação realmente ficar na esfera federal, onde os tentáculos tucanos sempre foram mais tênues, o placar voltará ao zero a zero.  


Governo já pagou quase R$ 64 milhões pela reforma do Utinga. Só a Paulitec já recebeu mais de R$ 37 milhões 


Gastos no Utinga 

2012
R$ 3.104.482,73
2013
R$ 11.148.993,29
2014
R$ 4.893.907,52
2015
R$ 12.992.288,09
2016
R$ 26.370.371,77
2017
R$ 5.433.436,10
TOTAL: R$ 63.943.479,50

Recebidos pela Paulitec
2014
R$ 134.821,41
2015
R$ 7.905.946,60
2016
R$ 23.915.705,12
2017
R$ 5.430.667,91
TOTAL: R$ 37.387.141,04



Confira você mesmo!  

Você mesmo pode conferir os gastos ano a ano no Parque do Utinga. Veja onde localizar a informação nos balanços gerais do Estado (BGEs): 

Ano 2012 – volume 2, página 257;
Ano 2013 – volume 3, página 265;
Ano 2014 – volume 3, página 274;
Ano 2015 – volume 3, páginas 262/263;
Ano 2016 - volume 3, página 249;
Ano 2017 – volume 3, página 248. 

Os balanços podem ser acessados no site da Secretaria Estadual da Fazenda (Sefa), neste link: http://www.sefa.pa.gov.br/index.php/receitas-despesas/contabilidade-geral/4593-balancos-gerais. 

E atenção para a “funcional programática”, um conjunto de 13 números, que identifica quem, quanto e onde gastou. 

De 2012 a 2015, a funcional programática “implantação do Parque do Utinga” era a 13.391.1340.7454. 

Em 2016 e 2017, ela passou a ser a 13.391.1444.7589. 

Vale salientar que essas declarações sobre os gastos naquela reforma são do próprio Governo Jatene. 

E que os números do portal da Transparência, sobre os recursos recebidos pela Paulitec e pelo consórcio liderado pela Sanevias, são compatíveis com os valores contidos nos BGEs.


-----  
 
A matéria acima, reproduzida com várias modificações a maior neste blog, foi publicada no jornal Diário do Pará do último domingo, 23/06.