Vovô Ghoto, que morreu com 146 anos: o mais velho do mundo? |
Pra vocês verem como é que são as coisas: tô com quase 60 anos e continuo a procurar um destino, ou melhor, um significado pra minha existência...
Às vezes, mais pareço uma garota de 16, 18, vinte e poucos anos.
Mas aí, olho no espelho e vejo os cabelos brancos, as rugas que insistem em aparecer.
E olha que uso creme à beça, ô xentes!
Tudo que é fórmula mágica desse tal de Youtube!
Mas o tempo está lá, sempre a me dizer: “isto daqui foi do Palácio dos Bares. Essa daí foi lá do Bar do Parque. E aquela ali, enorme, é de algum lugar que nem consegues te lembrar, de tão bêbada estavas...
Já cansei de conversar com o tempo, a tentar entender o porquê de tamanha malignidade.
Mas ele até já me jurou que não é maligno (o que muitos psicólogos diriam se tratar de um processo de negação).
_Veja bem – disse-me ele, um dia, entre baforadas de Malboro e um gole da sangria que preparei especialmente para ele – você precisa entender que não há nada de errado com o Tempo (e eu já comecei a me coçar toda, quando ele se referiu a ele mesmo em terceira pessoa...). A vida é um imperativo, mas que depende de constante renovação. Tudo o que vive tem de morrer, para que um novo ciclo se inicie. E se vocês não gostam disso, deveriam era reclamar lá com Deus, que foi quem determinou assim!
Ô sujeito manhoso, esse!
Parece até aqueles caras que participam de um crime horrendo e depois, na maior cara de pau, dizem pra gente: “eu estava apenas cumprindo ordens!”
Por que é que ele não se rebela, né mermo?
Ou poderia, ao menos, dizer: “Mas, Senhor, aquela sujeita já tá com a cara irreconhecível de tanto Botox! E tu ainda queres que eu ponha mais uma ruga na cara dela?”
Mas não. Tudo o que ele faz é ordenar pros aspones: “Coloca um bigode chinês naquela ali e uma careca naquele. Ou troca tudo! Afinal, precisamos é de uma brainstorming.de vez em quando!”
Certa vez, quando ele estava todo escarrapachado no meu divã, perguntei-lhe de chofre: “tu te julgas todo poderoso, né mermo? A bem dizer, a última da última bolacha do último pacote! E, no entanto, não consegues encostar nem o mindinho na alma da gente! Se eu quiser, saio daqui agora e vou andar de carrossel, de roda gigante, comer algodão doce. Vou até paquerar, que nem há três mil anteontem. E aí, o que é que podes fazer?
_Como é que é? – e ergueu-se, todo sarapantado.
_É, mano! A minha alma, apesar de ti, ainda é a merma da minha infância! É claro que tem uma marquinha aqui, outra, acolá... Um amor, uma decepção, que nunca mais que vai esquecer!... Mas a minha alma é a merma, mano: ainda continua ansiosa por viver! Ainda tem os mermos sonhos! Ainda dorme e acorda em busca dessa tal de felicidade; ainda anseia por um amor eterno! Ainda vive, mano; a minha alma ainda vive! Ainda é força, esperança, paixão, tesão! Ainda sorri diante de um beija-flor! Ainda diz a uma borboleta: “que linda que és!” Ainda sente o cheiro da chuva, mermo que distante! Ainda é, mano; a minha alma ainda é!
E ele, de cara amarrada, começou a dizer-me, com uma agressividade que dava pra ver que era difícil de controlar:
_O teu problema, Perereca (desculpem, tá?, demais leitores, mas sua Excelência-Meritíssima também é leitor deste blog), é que questionas tudo! Nunca estás satisfeita, caramba! Vives como se morresses a cada segundo!... Eu te obriguei a alguma coisa? Não! Eu fui responsável pelo que fizeste da tua vida? Não! Tudo foi obra do teu livre-arbítrio! Tu escolheste, Perereca, tu escolheste!... Havia três, quatro, dez caminhos à tua frente, mas tu escolheste este! Tu quiseste, com toda a força do teu coração! Tu é quem querias ser a última da última bolacha do último pacote!... Em tudo, não é?, em tudo! E agora queres que eu pare ou que até volte, só por tua causa?
_Não, aí é que te enganas! Eu não quero que voltes! E mermo que quisesses, eu não permitiria! Eu sou o que sou graças a ti - também! Tudo o que vi, tudo o que vivi, tudo o que aprendi, são partes desta que sou! Eu te transpiro em cada poro: és o melhor e o pior em mim! Não, eu não quero que desapareças, que voltes, ou até que te detenhas! O que eu quero é que pares de me empentelhar todas as manhãs! Que pares de me lembrar da idade que já tenho! Porque a minha alma, que não tem idade e nem jamais terá, não precisa disso!
-Se é assim que queres, assim será!
E lá se foi ele, todo ofendido.
Mas, antes de bater a porta com toda a força, ainda teve a cara de pau de me perguntar: “será que não podes me dar a receita dessa tua sangria bacana?”
Pra vocês, meus irmãos sessentões, deste Século 21: