Luísa
O vinho não consolou. Fazia tempo que se assemelhava às lágrimas que escorriam do coração. O vermelho intenso, o perfume das lembranças escondidas. O calor que se lançava nas veias, mas que se perdia nas geleiras da alma.
Luísa sentou-se na cadeira de balanço, pra lá e pra cá, pra lá e pra cá...
Da janela podia contemplar as árvores desfolhadas pelo Outono. Lisboa imersa em neblina... Os suspiros vindos dos lados da Mouraria. E a noite a arrancar à Severa todos os fados do mundo...
Lá longe, tão distante, era o Tejo. O verde vivo que se rendera à escuridão. E a lua a esmaecer sozinha, entre as estrelas que cintilavam no céu.
Na parede, o relógio marcava uma da manhã – por onde andaria Luís?
Não, ele não voltaria...
Havia meses que se fora, a outros braços, a outros mundos.
Qual um navegante que insistisse em desbravar outras terras – sempre além, sempre além...
Ele a amara, ou amara sozinha?
Mas, o amara, de fato? Ou quisera dele somente os beijos que lhe acendiam o corpo?
As mãos, os braços, as pernas que transformavam o desejo em suor?
Não, Luís tinha de ser o amor de sua vida, precisava ser.
Precisava, desesperadamente, dessa lembrança, desse fio de humanidade.
Precisava olhar o relógio e lembrar-se dele. Precisava de alguém, ao menos, para lembrar.
Precisava de um sentimento, de alguma coisa inexplicável, maior...O rio que só é rio pela certeza do mar...
Ah, as histórias que se contavam sobre o amor!...
A voz, o hálito de Tisbe, na fenda que reunia os amantes...As águas que carregavam o perfume de Isolda...A fonte a murmurar o lamento de Inês...
O olhar que traduz todas as palavras do mundo, num mero olhar...
A revelar, num lampejo, todo o mistério do Universo!...
A explosão da vida a repetir-se, infinitamente, em cada coração...
Em que corpo, em que mundo andaria Luís?
Lembrou-se da primeira vez em que se viram – quanto tempo passara, desde então?
Os olhos pousados nos olhos dele, enternecidos...Como o olhar do apaixonado à lembrança de sua paixão!...
Uns olhos que sorriam dela e que pareciam sorrir só para ela, entre todas as manhãs do mundo!...
Uns lábios que jorravam palavras incompreensíveis, um para o outro...E que nem importava compreender...
Pareceu-lhe que os pensamentos se enroscavam, um no outro, bem mais que as pernas, os cabelos e as mãos...
E que todo o resto – a vida, a morte, a felicidade, a infelicidade e as gentes (e toda a maledicência que carregam...) – se dissolvia na irrealidade em redor...
O que dera errado?
De onde viera o cansaço, a separar as bocas e o coração?
De onde nasceram as palavras, essas feridas tão profundas que nada poderia cicatrizar?
De onde viera esse frio a congelar o desejo que fluía, um do outro, às águas do mesmo mar?...
A cadeira pra lá e pra cá, pra lá e pra cá...
Tomou mais um gole de vinho. E sentiu o Outono a pesar-lhe nos ombros, a prenunciar o Inverno perene...
Viu passar um casal, as mãos enlaçadas, o riso solto. E quase que pôde sentir o sabor daquele beijo repentino, a envolver a neblina.
A ternura das almas que se dão no mesmo florescer...
Luís se fora, ela também se fora.
Foram-se, um do outro, como se pusessem um sonho a dormir...
Como as bocas que se calam, sem mais a dizer.
Ficaram a neblina, o vinho que não consola, a cadeira de balanço, o relógio na parede, as árvores cinzentas.
E essa escuridão a insistir-lhe no peito: é amor... Foi amor... Tinha de ser amor...
Belém, 21 de maio de 1998.
Um comentário:
Vem cá Luísa, me dá a tua mão...o teu desejo é sempre o meu desejo...
Ainda bem que tinha o vinho!
Beijinhos carinhosos.
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