quarta-feira, 4 de maio de 2016

O direito à cusparada



A inversão de valores é tamanha neste Brasil que há gente mais indignada com cusparadas do que com um golpe de Estado e com o avanço do fascismo.

Aconteceu primeiro quando Jean Wyllys cuspiu em Bolsonaro:  muitos reclamaram da cusparada, mas se “esqueceram” da homenagem de Bolsonaro a um torturador.

Acontece agora com a cusparada de José de Abreu: novamente, muitos reclamam do cuspe, mas se “esquecem” das ofensas dirigidas ao ator (e a mãe e a mulher dele) pelo digníssimo casal.

Aqueles que reclamam do cuspe fingem não ver que esse golpe de Estado reúne tudo o que de pior existe no Brasil: racistas, homofóbicos, misóginos, pentecostais endemoniados, ruralistas e delegados que pretendem resolver à bala todos os problemas sociais.

Gente que não se contenta com simples cusparadas: quer é colocar no pau de arara todos aqueles que “ousem” defender a Democracia.

Gente que, há anos, incentiva o ódio e é corresponsável pelos espancamentos e assassinatos de centenas, milhares, de mulheres, negros e homossexuais, em todo o país.

Bem vistas as coisas, as cusparadas dos democratas têm sido até muitíssimo civilizadas, perto do ódio que se alastra em nossas ruas.

São adolescentes, mulheres, jovens, idosos, cadeirante, levando socos, pontapés, quando participam de alguma manifestação, ou simplesmente quando usam alguma coisa vermelha, ou expressam uma opinião.

É mãe, com bebezinho no colo, levando pedradas e ouvindo toda sorte de palavrões, só por usar um sling vermelho.

É médica se recusando a atender bebê, só porque a mãe dele é petista.

É criança de vermelho sofrendo bullying na escola.

É sede de partido de esquerda sendo depredada.

E os atentados ocorridos, ou em gestação, contra dezenas, centenas, milhões de brasileiros?

Como o projeto aprovado em Alagoas (e com similares em vários estados e até no Congresso) proibindo professor de emitir opinião em sala de aula.

Como o Estatuto da Família, que nega aos homossexuais (e às crianças que eles adotam) o direito básico de ter família.

Como o projeto que pretende obrigar mulher a ter filho até de estuprador.

Como a redução do conceito de trabalho escravo, para que trabalhadores sejam submetidos a jornadas exaustivas e a condições de trabalho degradantes (ou seja, colocados a trabalhar 14, 16 horas por dia; a viver em cubículos, sem condições mínimas de higiene; a beber da mesma água que bois e cavalos; a trabalhar por um prato de comida).

Como o fim do processo de licenciamento ambiental, que tende a provocar desastres inimagináveis, até maiores do que Mariana.

Como a terceirização da atividade-fim das empresas, que reduz salários e suprime direitos.

Como o desconto salarial até da pausa do trabalhador para ir ao banheiro.

Para os indignados com as cusparadas, porém, tudo isso parece “menor”.

Grave mesmo é cuspe na cara, “violência insuportável e covarde”.

Mais do que jogar pedra em mulher com criança de colo. Mais do que espancar cadeirante. Mais do que tentar linchar adolescente. Mais do que escravizar trabalhador. Mais do que submeter homossexuais a toda sorte de violências e humilhações.

No fundo, o que tais indignados gostariam é que aceitássemos passivamente tudo isto: porradas, xingamentos, subtração de direitos, avanço do fascismo, golpe de Estado.

Só assim, aos olhos deles, seríamos “dignos”, “nobres”, “educados”.

Até porque, só assim, eles não teriam de revelar a sua verdadeira face; o tipo de sociedade que, no fundo, estão a defender.

É que o fato de reagirmos os obriga a tomar posição. E eis que todos os veem a marchar lado a lado com Bolsonaro, Eduardo Cunha, Michel Temer, Malafaia, Ronaldo Caiado, Marco Feliciano.

Pois é: a indignação com as cusparadas é apenas um jogo de cena, um subterfúgio.

Porque o que os incomoda de verdade é o retrato, já agora sem máscaras, que deles ficará para a posteridade.

Afinal, vamos e convenhamos, bem mais preocupante seria a lei de talião.

Por isso, queira Deus que a reação a tamanha violência continue restrita ao simbolismo de uma bela cusparada.

FUUUUUIIIIIII!!!!!!

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Há pouco, noticiam as redes sociais, uma manifestante foi baleada, durante ato do MTST, em São Paulo. O tiro foi disparado pelo motorista de um carro que passava no local.

Mas isso, é claro, também é bem menos grave do que as nossas cusparadas, não é? 

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