domingo, 27 de dezembro de 2009

Um Natal qualquer


Para trás ficaram as mangueiras, as sapotilhas, os biribás.


Os sonhos e as almas que rondavam os seus porões.


A árvore imensa, num canto da sala. As enormes bolas vermelhas e douradas. Fios prateados, rolos de algodão.


A família a acender a casa: os pais, os muitos irmãos, primos, tios, vizinhos; as gentes vindas do interior, ligadas por um parente qualquer.


Os doces que se abriam sobre a mesa: brigadeiros, quadradinhos de maracujá, pastilhas de leite; a Taça da Felicidade que nunca provou...


Os cachos de balões que os irmãos arrumavam por todo canto.


As brincadeiras, as risadas. Um tempo que seria para a vida inteira uma eterna cantiga de ninar...


Vinha o dia.


Bolas, carrinhos, bonecas enchiam as calçadas; naquele tempo, Papai Noel nunca lhe faltou...


Era, dentre os mistérios, talvez o mais misterioso; maior até mesmo que Deus.


Ainda assim, não duraria mais que a infância. Como todos os mistérios do mundo, aliás.


A vida levou-lhe os pais, os vizinhos, os contraparentes; dispersou-lhe os irmãos.


Inchou a cidade, despedaçou os quintais.


Semeou o medo nas calçadas.


Espantou as crianças e a passarada.


Arrancou-lhe a poesia das ruas estreitinhas; as raízes das mangueiras; a magia dos natais.


Ergueu-se em direção ao céu, em fumaça, sangue e calor.


Transformou-se num mistério, dentre os mistérios o mais misterioso, pelas dores causadas, sem nem sombra de dor.


E hoje, o cabelo branqueado, o rosto enrugado, postou-se diante do edifício onde respirou o casarão.


Correu pelo quintal imenso, a colher uns abricós mágicos, que não cansavam de se multiplicar.


Tocou as mãos das almas que suspiravam em seus porões.


Olhou a grande árvore, as bolas vermelhas e douradas, os fios prateados, os rolos de algodão.


E recuperou o brilho do olhar que as estrelas lhe haviam roubado, para iluminar os céus.


Nos olhos do neto.


E assim, sucessivamente.




Belém, 27 de dezembro de 2009.

4 comentários:

Benny Franklin disse...

MARAVILHOSAMENTE BELO. DE PRIMA.
BOAS FESTAS.

Doralice Araújo disse...

Lindos e comoventes versos, Ana Célia; obrigada por compartilhá-los com os seus leitores.

Anônimo disse...

Amén!(Isso me lembrou a minha infância...) E o neto, o que vê? Só concreto e aço, e carros, carros e mais carros...?

Anônimo disse...

Ana, um feliz 2010 e muita - mas muita mesmo - garrra para continuar nos brindando com sérios,bons e belos textos frutos de teu trabalho. Este poema me levou as lágrimas, aumentou minhas saudades e esperanças, pois espero um neto ou neta para junho. Quem o escreveu? Tú?
Maria Souza