segunda-feira, 13 de abril de 2009

alice

Alice



De repente, fez-se a luz. E Alice percebeu que todas aquelas pessoas formavam uma infinita teia de relações.



Mesmo os que de público se odiavam, possuíam, em verdade, parentes e negócios em comum.



Eram, assim, não um punhado de mafiosos encapsulados em seus clãs.
Mas, um organismo que necessitava de cada célula, de cada veia, pulsante, dilatada, para alimentar-se da sociedade ao redor.



Estava cansada, esgotada. E o calor e a umidade dessa terra deixavam-na ainda pior.



Era uma cidade imunda, com seus caudalosos rios de lama, que buscavam submergir tudo e todos.



Pelas ruas, mendigos, pequenos cheiradores de cola, assaltantes, punguistas, prostitutas, trabalhadores famintos, que mal pareciam humanos.



Pois, que da Humanidade lhes restara, apenas, o aspecto exterior.



A alma, o espírito, a mente, ou como se queira chamar a esse fenômeno físico-químico, metafísico, biológico, psicológico, cultural; este havia sucumbido sob o peso de uma existência que se resumia a manter-se de pé.



E a multidão que tomava as ruas – as crianças miseráveis e entorpecidas; as mulheres que não possuíam sequer o próprio corpo; os trabalhadores sem alma e sem futuro; todos eram como que canoas repletas de esperança, que se perderam num oceano de não-vida.



E os edifícios que se erguiam um pouco por todo canto, sufocando os corredores de vento; decuplicando, com seus vidros, o calor acachapante, como que refletiam as almas daqueles que se alimentavam dessa multidão.



Era uma terra sem Lei.



Mas, de muitos reis. Cada qual, a seu modo, um Grande Coestre.



E havia, também, acólitos em profusão; a massa desprovida de todo ranço de dignidade, à qual custava manter-se ereta.



Reis e acólitos vicejavam na malemolência dessa terra, onde até os anões podiam parecer gigantescos, desde que possuíssem boa dose de esperteza.



Serviam-nos os jornais, os fabricantes de desinfetantes, os vendedores de sabão; os comerciantes de desodorizantes, as agências de publicidade, os burocratas, os assessores, quase sempre consangüíneos; os artistas, sempre em busca de um mecenas; os jornalistas, sempre a implorar por seus brindes de Natal...



Quanto aos intelectuais... Bem, era de tal sorte a preguiça, e até o despreparo, que o mais simples exercício de pensamento os exauria.



Daí que preferissem profetizar de mesa em mesa, de bar em bar...



E, a bem da verdade, só conservavam tal condição por lhes facilitar as benesses de algum poderoso – e até a absolvição pelo álcool, maconha e todos os vícios.



Alice olhou ao redor e sentiu que estava sendo triturada pelas bocarras famintas, triássicas, que se abriam sobre a cidade.



Nem fugir podia: sobre as bocarras, milhares de olhos giravam em todas as direções.



E das costas desses seres partiam tentáculos mágicos, capazes de atravessar quilômetros, mesmo entre rios, paredes, montanhas, florestas.



Ah, os Senhores dessa terra!...



Tão iconoclastamente rudes!...



Tão comezinhos em busca do menor farelo de poder!...



Tão autólatras na certeza de eternidade!...



Muitos até escreviam auto-louvações e as faziam exibir em jornais, programas de TV e outdoors.



Louvavam-se desde o nascimento até o primeiro ataque de gases – um mal que os acompanharia, impertinente, por toda a vida...



E, não satisfeitos em louvarem a si mesmos, ainda escolhiam para acólitos aqueles que louvassem as virtudes que nunca tiveram e as proezas que jamais realizaram.



E, ainda assim, disputavam à tapa títulos e premiações; dir-se-ia que feitos sob encomenda...; que eram regiamente pagos, às escondidas.



Tudo ali parecia gerado na infâmia; tudo estava em permanente putrefação.



E Alice pensou que talvez fosse o clima; a junção de tal calor e umidade a não permitir nada além de uma forma de vida sebenta e espúria.



A inseminar, em todos, um fedor nauseante de esgoto a céu aberto.



A tornar a todos como que partículas escatófagas de um imenso lamaçal...

Um comentário:

Fernando disse...

Dá-lhe Ana Célia, essa inspiração animal só pode ter como origem o licor de cupuaçú da madre superiora. Quanto a musa, imagino quem seja apesar de poder jurar que qualquer parecença é mera similitude.
Que a pomba do divino esteja sempre rondando a tua cabeça para que continues nos brindando com textos de boa safra como este.
Um abraço