quinta-feira, 13 de setembro de 2007

Renan

Sobre Renan


Sinceramente, não consigo entender essa “dor moral” da classe média diante da absolvição de Renan Calheiros. Que é que há nisso de tão estranho, maravilhoso ou brutal?

Às vezes, ao ler a classe média, tenho a impressão de que padecemos, todos, de impossível esquizofrenia. O mundo é, para nós, o ideal, simplesmente o ideal. Nele não existem a dona Maria e o seu José.

Somos nós a decidir. Somos dez ou cinco por cento da população a “decidir”, é verdade. Mas, mesmo assim, “decidimos”, no ideal de Brasil que imaginamos.

Nem nos passa pela cabeça que inexiste esse nosso mundo. Que somos umas merrecas de alfabetizados, entre milhões de analfabetos – em sentido lato ou restrito.

Nem nos passa pela cabeça que clamamos no deserto. E que assim será enquanto a massa nos brasileiros não for, ao menos, classe média, também.

Muitos de nós enfrentaram ou enfrentam dificuldades na vida. Mas as nossas dificuldades implicam, geralmente, cortar duas ou três cervejas no final de semana, manter o fogão velho, a geladeira de penúltima, o celular que não tem aquela câmera afiada que apode fotografar o chefinho devidamente...

Nem nos passa pela cabeça que as dificuldades da dona Maria e do seu José são de outra ordem: é fome, MERMO, é falta, MERMO.

Não é uma questão de escolher: não há, simplesmente, escolha. É pegar o pão velho, bichado, tirado do lixo. Se não, é a dor da fome – que dói, mermo, sem qualquer imagem retórica.

As nossas empregadas não têm a casa “arranjadinha”, porque pouparam. Não “cheiram bem” porque têm noções de higiene. Não são honestas porque “nem todo pobre é desonesto”.

Fedem, moram em barracos e são desonestas porque o contrário é pedir demais de um ser humano.

Se meu filho chorasse de fome eu roubaria. E se eu visse uma “madame” jogando fora um catatau de comida, então, nem teria clemência.

O problema é que queremos pegar as exceções como casos exemplares. Mas, nos mudemos, todos, para a Terra Firme, para ver o que acontece.

Não sobra um honesto – se julgado por atos, palavras e pensamentos.

Renan foi absolvido? Quem sabe disso? Apenas nós, tão somente nós, com essa nossa “fineza”, com essa nossa hipócrita indignação.

Deveríamos ter nos indignado com o Zebedeu que nasceu sem mirra, incenso e ouro. Que subvive que nem bicho. Que come hoje – e acolá, se roubar, se tiver a capacidade de roubar.

Abandonamos as escolas públicas, os postos de saúde. Ouvimos o chamado da Ditadura e matriculamos nossos filhos em escolas particulares, contratamos planos de saúde. E deixamos a “gentalha” ao Deus dará.

E, agora, queremos a solidariedade dela, à nossa moral? Queremos que entenda a diferença entre o público e o privado, quando até nós condescendemos?

Queremos que diga: “Fora, Renan!”. Mas, que diabos, quem é Renan? É o homem da ficha no posto? É o sujeito que carrega a cesta básica? É o diretor da escola que ameaça expulsar o Raimundo, porque o Raimundo é preto, semi-analfabeto e não sabe se defender?

Quem é Renan na história deste Brasil escravocrata, a não ser mais um escravocrata, mais um senhor?

Qual é o escândalo que se assemelha ao do menino que saiu de bicicleta de casa, para ir trabalhar num emprego miserável e que morreu pelo meio do caminho?

Quem é este branco, o doutor, como milhares de outros doutores, que acha que é o único cadáver que essa guerra já produziu?

Me indignei com a foto de uma criança, que morreu num posto de saúde, nos braços da mãe.

Mas, você acha, maninho, que ela se indignou? Pra modo de que iria se indignar, se isso é tão normal, não é mermo?

Morreu, morreram, morrerão. E ela, a dona Maria, sabe que a vida tem de seguir em frente. É respirar fundo. E fazer outro, neste mundão de Deus!

Nós, classe média, nos permitimos sentir, inclusive a indignação. Temos tempo e condições para isso.

Podemos pensar as notas dos nossos filhos, os destinos deles. Podemos até sofrer crises existenciais do tipo: onde foi que errei!

Quem passa fome, maninho, não tem tempo pra essa frescura. Tem de sobreviver. Precisa sobreviver.

E que importa Renan? E a Mônica e a Playboy? Eles são um outro mundo, outra coisa, o “ah, é?...”

No dia a dia, no remelexo da sobrevivência, não significam nada. Não adiantam, nem atrasam porra nenhuma.

E agüentem aí, blogueiros, enquanto a dona Maria, o seu José e eu vamos medir a febre do Raimundo Preto, que não tem direito nem a um Melhoral...

4 comentários:

Anônimo disse...

Gostei!!! Como se dizia antigamnete: "falô e disse", ainda falta mais...

Anônimo disse...

Acontece que o tal "Renan" é parte integrante e significativa da Zelite que, de maneira DIRETA, provoca a miséria e a fome, de alimentos e de boa educação do ZéPovinho.
E se eles, o povinho, são desinformados e não se importam, vamos deixar por isso mesmo? não vamos nos indignar? nunca, não mesmo.
Por aceitarmos bovinamente, passivamente há tanto tempo, é que chegamos onde chegamos: miséria e violência sem controle.
Ponha na conta dos Maluf, ACM,Sarney e assemelhados.
Se perdermos a capacidade de indignação, melhor cavar a cova.
Acorda Brasil sempre é tempo!

Anônimo disse...

Gostei!

Anônimo disse...

Seu texto está maravilhoso Ana.Um resumo realista do Brasil atual.O difícil vai ser os alienados da Globo e da Veja entenderem.