terça-feira, 15 de maio de 2007

A carta

A Carta de Chico Ferreira


Depois dessa noite, a Perereca pensa, seriamente, em convidar Chico Ferreira para, eventualmente, a substituir, nas tentativas de enveredar pelo teatro ou pelo romance...

O enredo da carta de Chico Ferreira é um primor de criatividade. Daria, com certeza, um best-seller, com direito a roteiro de superprodução cinematográfica. Ou, no mínimo, um remake do clássico “Amnésia”...

Em suma, o empresário diz que Sebastião Cardias, espécie de líder de um grupo de extermínio, seria o único responsável pelos assassinatos dos irmãos Novelino.

E é interessante notar como Cardias é quase “sem querer” elevado à condição de um Robin Hood no tucupi: por diversas vezes, teria repetido, ao longo da matança e sabe-se lá por que, que lugar de empresário ou agiota é ou na cadeia, ou debaixo da terra. Um vingador social. Perverso, covarde, mas um vingador social...

Repleta de erros gramaticais, quase sem pontuação, aliás – os pontos e vírgulas foram colocados, na maioria, pelo DIÁRIO, para tornar a leitura inteligível – a carta é quase um clássico do surrealismo.

Exemplo: jogado no chão, algemado, amordaçado e, sobretudo, encapuzado, Chico Ferreira teria se “borrado” ao testemunhar o estrangulamento de um dos Novelino. Como viu, só Deus sabe...É a essência da Fé: ou se tem ou não se tem...

Aliás, invocação do Altíssimo é o que não falta na dita cuja. Os Novelino, segundo Chico Ferreira, não morreram: ou foram arrebatados, ou, simplesmente, passaram para a vida eterna. Tão bons eram, que estão, hoje, bem do ladinho de Nosso Senhor Jesus Cristo... Chico Ferreira, aliás, tem certeza de que os encontrará em tal recanto. E a Perereca se sente tentada a convidar Nosso Senhor para um megacapítulo da Festa no Apê...

Mas, a suposta fragmentação psicológica, digamos assim, atinge o ápice quando Chico Ferreira se compara a um personagem bíblico. Ninguém mais, ninguém menos, que o antológico Jô - no pó, na terra, coberto de chagas e de cinzas.

Jó, que, como se sabe, foi sujeito a todas as provações possíveis – perdeu dezenas de filhos, as propriedades, a saúde, os amigos, que se compraziam em criticá-lo – porque um melífluo Satanás jurou que, dessa forma, o coitado renegaria a Deus.

E Deus – vaidoso, sujeito às tentações de Satanás, vejam só – resolveu, orgulhosamente, apostar as fichinhas no pobre coitado.

É claro que Jó dá um post inteiro – o Homem como joguete das forças que desconhece e o dominam. O Homem, exangue, nas mãos do imponderável. Mas o que nos interessa não é isso. É, tão somente, Chico Ferreira.

A carta, também, está cheia de recados, razoavelmente disfarçados. Por exemplo, quando recorda, assim, pra modo de quem não quer nada, que o autor procurou os Novelino, também, porque um deles foi citado no “organograma” Chico Ferreira, apreendido pela Polícia Federal, durante a Operação Rêmora, em novembro passado.

A lembrança, aliás, é repisada uma segunda vez – e ele, é claro, depois de citar o fato, sustenta que, longe dele, acreditar em tal coisa...

Faz sentido. Primeiro, porque, se os Novelino estiverem incluídos, de fato, no dito organograma, vão querer diminuir o tom da revolta, nem que a mantenham de público, mas, ao menos, na persistência pela punição. É a tal coisa: quem morreu, morreu; é preciso assegurar a sobrevivência dos que ainda não “passaram para a vida eterna”.

Segundo, por uma questão que diz respeito a todo e qualquer ser humano: todos queremos preservar, o mais possível, a memória dos que se foram. A morte, de certa forma, “santifica”. E não há quem queira ver a história de um ente querido jogada na lama.

Outro recado atinge empresários, partidos e políticos, que teriam sido igualmente incluídos no tal “organograma”. Chico exibe o poder de fogo que detém. É como se dissesse: tais e tais peões me pertencem. E fazê-los falar – ou calar – depende de mim, assim como a modulação do que estou disposto a dizer.

Entre os citados nominalmente por Chico Ferreira, na sua franca e meiga cartinha, sobrou para o coitado do Botelho, consultor do Estado, para os pastores Josué Bengtson e Martinho Carmona e para o ex-deputado Wilmar Freire, herdeiro do “famosíssimo” Wirland.

Quanto aos funcionários da Service Brasil, igualmente citados, o chefe deve saber onde amarra o burro. Idem, para o “jornalista e radialista” Luiz Araújo, do qual, na carta, Chico Ferreira tenta se distanciar – como se o conhecimento entre ambos se devesse, principalmente, às atividades profissionais que aquele desenvolve, ou à piedade pelo AVC de um pai, mas, jamais, pela constituição societária de empresas como a Promev e a Mediserv, das quais Araújo já figurou como “proprietário”...

Pensada, arquitetada, a carta cometida por Chico Ferreira só peca pela profusão de erros de português. Afiadíssimo, ele chega a dizer ao deputado Alessandro Novelino e a um irmão dele, que é preciso reunir, para conversar sobre assuntos de interesse da família. E pede que Carmona ou Josué sirvam de testemunhas...

É possível que Chico Ferreira esteja, de fato, desesperado. Afinal, para quem curtiu a vida como ele, a cana dura é a cana dura, especialmente se a perspectiva é de longa duração.

Mas, não há dúvida quanto à premeditação: o apelo à religiosidade, em vários níveis, que cala fundo ao imaginário popular, é prova disso. O apelo ao arquétipo do herói, capaz de sacrificar-se e expor-se a todos os perigos, para atender ao Sublime – no caso, o pedido desesperado de um irmão das vítimas e a realização da Justiça. Os recados aos que detêm poder para acordar as massas, facilmente tangidas pela emoção...

Chico até revela que a reunião no MPF, na segunda-feira da semana passada, se deu a pedido dele, em busca de proteção, inclusão num programa de testemunhas – ou seja, na delação premiada. Em outras palavras, para a insônia de muitos, ele se transformou na própria esfinge: decifra-me ou te devoro...

À noitinha, depois de desenredar-se do DIÀRIO e de tomar mais umas de vodka, a Perereca retorna, com outros comentários sobre a explosiva cartinha.

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